Joan Miró, o artista que encanta em Serralves
Após tanta celeuma relativamente à permanência da coleção de Joan Miró no Museu de Serralves, no Porto, esta veio a confirmar-se e a celebrar-se há semanas atrás. Celebra-se, assim, o acervo de um dos maiores artistas ibéricos num museu português, provenientes da exposição “Joan Miró: Materialidade e Metamorfose“. Para que se aborde o talento espanhol, importa assinalar que não se remeteu somente à pintura mas também à cerâmica e à escultura. Talento este que conheceu equivalência na quantidade de obras criadas e no surrealismo que empreendeu e que norteou o seu percurso criativo. Tanto que o substantivo “Miró” passou a designar uma obra sua, com particularidades específicas e com uma mística muito “sui generis”. Tanto que até o arquiteto português Álvaro Siza Vieira equaciona remodelar Serralves graças à perpetuação das obras de Miró. Tanto que merece um especial escrutínio.
Joan Miró i Ferra nasceu a 20 de abril de 1893 na cidade catalã de Barcelona, em Espanha. Filho de Miquel Miró Adzerias e de Dolors Ferrà, foi desde cedo que se entregou ao engenho pela pintura, sendo o seu pai ourives e incutindo-lhe também apreço pela arte manual. Com 7 anos, tinha lições de desenho numa escola privada que ficava sediada numa mansão medieval. Com 14, ingressou numa Academia de Belas Artes em La Lotja, não obstante o desagrado nutrido pelo seu progenitor. A sua formação prosseguiu em Barcelona, nomeadamente na Cercle Artístic de Sant Lluc, e já com 25 anos, organizou a sua primeira exposição na galeria Sala Dalmau. Obtendo uma reação satírica, aproximou-se da comunidade artística parisiense e, em 1920, emigrou para a capital francesa, de forma a poder consolidar as suas influências cubistas e surrealistas. No entanto, as suas raízes permaneceram intactas no seu percurso, visitando a Catalunha durante os verões.
Joan Miró antes tinha tentado seguir uma carreira diante de um escritório mas um esgotamento nervoso fê-lo repensar as suas pisadas profissionais. Foi desta forma que se entregou às suas influências artísticas, nomeadamente a exposições em Barcelona de obras fauvistas e cubistas e a dois nomes do pós-impressionismo, sendo estes Vincent van Gogh e Paul Cézanne. Este primeiro período do seu trabalho seria designado de “Fauvista Catalão” e seria marcado pela predominância da cor e pela simbiose das diferentes correntes acima mencionadas.
Contudo, e já em Paris, os ares gauleses motivaram um toque mais identitário e próprio da sua obra. Alguns pormenores individuais e nacionalistas acabaram por fazer parte de uma linguagem simbolista que catapultou Joan Miró como um dos pioneiros deste idioma representado na década de 30. O escritor norte-americano Ernest Hemingway reforçou a capacidade de um quadro de Miró levá-lo a sentir Espanha como presença física e saudade emocional. Esta composição meticulosa mostrou também a influência cubista no âmbito de certas representações em certas distorções ou desproporções. Na essência, revelava-se um eixo realista corroborado pelos símbolos pictóricos que exprimia. Este registo tentou ser promovido pelo artista mas foi visto como demasiado realista e convencional pelos seus parceiros surrealistas. Assim, a separação entre a figura e a terra, esta como suporte de um cenário paisagístico, tornar-se-ia cada vez mais explorada nos anos seguintes.
A natureza poética e surreal do espanhol tornou-se cada vez mais reforçada a partir de 1924, quando se juntou oficialmente ao grupo surrealista. As eventuais contradições dualistas que vinha expondo no seu trabalho conheciam novas oportunidades de estudo criativo numa dimensão onírica e surreal. Desta forma, adotou uma postura mais antagonista perante as convenções outrora defendidas e deixou-se levar pela dinâmica do sonho e pela abstração motivada por esta distinta viagem. Os símbolos voltaram a conhecer um novo fôlego e passaram a ser ligados à conduta surrealista seguida pelo artista.
Foi esta toada simbolista que impediu Miró de se desvincular totalmente da matéria e da sua objetividade. A linguagem esquemática que se articulou com a espontaneidade surrealista foi produto de um trabalho metódico e consolidado por parcerias com, por exemplo, Max Ernst. O artista alemão contou com a ajuda do espanhol para ser o pioneiro na técnica do “grattage”, onde a pintura se “desprende” da tela, tendo como fim dar a ilusão de relevos e de texturas tridimensionais. Na sua produção individual, as formas que foi expondo tornaram-se gradualmente mais simplificadas e foi enveredando também pelas colagens. Aqui, arriscou numa linha quase contrária à qual tinha seguido até então. Estas experimentações foram sendo elencadas num conjunto de mais de duzentos livros ilustrados denominados “Livres d’Artiste”.
Collage Painting (1934)
Em termos pessoais, o artista casou-se em Palma de Maiorca com Pilar Juncosa, tendo com esta uma filha de nome María Dolores a 1930. Contudo, não só no plano mais íntimo a sua vida conheceu um novo ímpeto. O filho de Henri Matisse, de nome Pierre, abrira uma galeria de arte em Nova Iorque e tornou-se num pilar para a promoção da arte moderna no continente americano. Joan Miró contou com a sua representação e as suas obras passaram a ser exibidas do outro lado do Atlântico.
Até ao despoletar da Guerra Civil Espanhola, o pintor visitava o seu país com frequência mas prescindiu dessas visitas mal esta começou. Seguindo a maioria da comunidade surrealista, Miró preferiu coibir-se de comentários políticos, apesar do nacionalismo catalão que vinha advogando no seu trabalho e do mural que pintou para o Pavilhão Republicano Espanhol (isto na exibição parisiense de 1937).
De seguida, e já em plena Segunda Guerra Mundial, o pintor retornou a Espanha durante a França de Vichy, governada nos bastidores pelas forças nazis. Ainda assim, o impacto assumido pelo conflito não impediu Miró de explorar guaches e, com estes, uma simbologia celestial que confluiu em si também as aves e as mulheres. Foi nesta senda que o espanhol se baseou para a maioria do que restava da sua produção criativa até ao final da sua carreira.
“The spectacle of the sky overwhelms me. I’m overwhelmed when I see, in an immense sky, the crescent of the moon, or the sun. There, in my pictures, tiny forms in huge empty spaces. Empty spaces, empty horizons, empty plains – everything which is bare has always greatly impressed me.”
Joan Miró sobre a celestialidade
Durante um período de sucessivas migrações, o artista foi colaborando com outros notáveis criativos, tais como o japonês Shuzo Takiguchi (na produção de uma monografia) e os franceses Fernand Mourlot (diversas litografias) e André Breton (um dos embaixadores do movimento surrealista). No final da década de 50, Miró deu uso às competências adquiridas na produção de litografias e começou a construir esculturas e obras de cerâmica. Algumas destas constam no jardim da Fondation Marguerite et Aimé Maeght, em França. Também sob a tutela de Breton, o pintor fez parte da exibição “Homamge to Surrealism”, representando a Espanha com artistas como Salvador Dalí ou Enrique Tábara.
Potenciando a fama que granjeou nos Estados Unidos, Joan Miró produziu uma vasta gama de trabalhos neste país, desde esculturas a tapeçarias. Consigo levou o também catalão Josep Royo na produção da tapeçaria do World Trade Center, tratando-se de uma das obras mais caras que se perdeu aquando dos ataques de 11 de setembro. Para além dessa, fizeram outra que foi exibida na National Gallery, em Washington.
Após ser nomeado doutorado honoris causa pela Universidade de Barcelona, deixou o seu último grande trabalho na cidade de Chicago, na qual foi posicionada a sua escultura “Miró’s Chicago” (1981). Em pleno dia de natal de 1983, Joan Miró foi vítima de uma falha cardíaca na sua residência em Palma de Maiorca e faleceu aos 90 anos de idade. Antes da sua morte, criou e estabeleceu em 1975 a Fundació Joan Miró, no Montjuic, em Barcelona. A mesma foi criada para fomentar a produção de arte contemporânea por parte de jovens criativos e para homenagear a arte moderna produzida por si e por demais artistas. Para esse fim, possui mais de dez mil peças que se encontram espalhadas por este espaço museológico.
Joan Miró foi um dos artistas mais abrangentes e diligentes do século XX. Não só na pintura como também na escultura, o espanhol tornou-se num dos notáveis que foi homenageado em vários centros do mundo. As formas orgânicas intercalaram-se com os planos do seu desenho e com o dadaísmo que importou na sua simbologia artística. Grande parte desta expiração criativa nasceu também da repressão franquista ao regionalismo catalão, dando-se a causas deste género para consolidar a sua produção. Apesar de se associar ao surrealismo, nunca se privou de ir mais além, embarcando em horizontes expressionistas e abstracionistas, ambicionando a pintura em quatro dimensões e até a “gas sculpture”. O espanhol nunca foi o mais amistoso para com os críticos de arte e para os representantes institucionais, fazendo valer a sua conceção artística própria. Foi esta que motivou que outros tantos como Mark Rothko, Jackson Pollock e Roberto Matta dessem à luz o expressionismo abstrato. Assim, este artista multifacetado deixou um percurso criativo repleto de abordagens distintas, apesar de nunca perder a essência da sua identidade. O acervo da sua autoria que se encontra em Serralves é um exemplo da dimensão que um “Miró” assume. Um mito compreendido no abstrato sonhador mais rendido.