João Donato e o tranquilo refúgio de quem vive para a música
Numa noite de chuvas tão intensas que inundaram partes da Avenida da Liberdade, em Lisboa, encontrámos um refúgio tropical no Teatro Tivoli, através da música de João Donato. Um dos nomes incontornáveis do termo guarda-chuva MPB (música popular brasileira) e da bossa nova, o cantor e compositor conta já com 88 anos bem vividos, algo que se nota na morosidade dos seus movimentos, mas também nas ricas histórias que foi contando ao longo do concerto que deu na capital portuguesa no passado dia 10. Como quem recorda uma interacção divertida com o vizinho do lado, João vai navegando por telefonemas e conversas com Tom Jobim, Dorival Caymmi e João Gilberto. O público, embevecido, absorvia cada palavra dos discursos soltos nos quais o artista se perdia entre canções, durante as quais a sua lucidez não tinha falhas.
Trauteando a melodia de cada canção para si mesmo, os seus dedos começavam a deslizar pelo xadrez do piano de cauda, tornado informal pela fluidez da música plácida e determinadamente relaxante do artista. De repente, éramos transportados para o Rio de Janeiro, algures nos anos 60. Ocasionalmente, exclamava aquela que é a sua catchphrase, “Água!”, aproximando-nos ainda mais do mar, pelo qual o artista teve de atravessar sete montanhas, como canta em “Nasci Para Bailar”, canção que evoca os quentes ritmos cubanos.
Ouvimos também “Bananeira”, sambinha partilhado com Gilberto Gil que é jovial mas ponderado; “Sambou… Sambou”, a colaboração repentina com Zeca Pagodinho, como nos contou na história sobre a gravação da mesma; mas também um dos hits mais recentes, “Serotonina”. Esta última canção é sobre a sensação que a música nos provoca, levando João a dizer que até deveria ser vendida na farmácia, para gáudio da audiência.
A certa altura, recebe em palco a, nas suas palavras, “encantadora” fadista portuguesa Carminho, que não é estranha a colaborações com artistas brasileiros ou até à reinterpretação de clássicos da música do Brasil, após Carminho Canta Tom Jobim, de 2016. Juntos, atiram-se a “A Paz” (por mais de uma vez, dado que também a tocaram para fechar o espectáculo) e ao clássico de Jobim, “Triste”. Sem emular o sotaque brasileiro, Carminho navegou pela delicadeza das canções com a sua voz elástica e melódica, controlada nos momentos certos, mas sem menosprezar a sua enorme força. Acima de tudo, demonstrou um enorme respeito pelo material original, mas sem se subjugar completamente ao mesmo.
João Donato é uma pessoa que vive — e sempre viveu — para a música. Conta-nos que, na primeira vez que se emocionou com música, era ainda criança. A sensação que aflorou nesse momento levou-o a querer compor canções que causassem uma certa dormência, no melhor sentido da palavra. Ao longo de 60 anos, o seu espólio musical representa exactamente isso. Uma colecção de temas que desaceleram o tempo, deixando espaço para apreciar a beleza que nos rodeia e sentir uma joie de vivre muito gratificante.
Bem humorado, conta-nos uma das suas recordações de Tom Jobim, sobre como ele dizia “roubar os pedaços bonitos das músicas dos outros” para criar algo novo. Isso inspirou João Donato. Nota-se na mistura que compõe o seu cocktail de samba, bossa nova, folclore brasileiro e psicadelismo. Mesmo pegando em elementos pré-existentes, imbui-os de uma tranquilidade inconfundivelmente sua.
Foi isso que sentimos no refúgio caloroso do seu concerto, para além do fervilhar do seu talento — infelizmente sub-apreciado. Já perto do final, “Emoriô” incita-nos a acompanhar o artista na cantoria, na ânsia de partilhar um momento com João Donato antes que nos deixe com a sua obra, obra essa que será eterna.