José Tolentino de Mendonça: um caminho com Deus acompanhado pela literatura

por Lucas Brandão,    15 Dezembro, 2019
José Tolentino de Mendonça: um caminho com Deus acompanhado pela literatura
Tolentino Mendonça / Ilustração de Marta Nunes – CCA (@martanunesilustra)
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José Tolentino de Mendonça é uma das figuras que, hoje, da Igreja Católica, é mais reconhecida em Portugal. Mais do que o seu percurso ligado a Deus, o cardeal é um vulto que pensou e pensa sobre essa figura divina e o seu diálogo com aquilo que lhe rodeia, com a Natureza e com a humanidade. Nascido na Madeira, Tolentino fez das suas origens um palco para uma visão mais ecuménica que o habitual, aberto a outras experiências espirituais e a outros sabores líricos, que o ajudaram a consolidar um olhar único e relevante na sociedade sobre o papel de Deus num ateísmo cada vez mais profundo e irreversível.

José Tolentino Calaça de Mendonça nasceu a 15 de dezembro de 1965 na Madeira, mais precisamente em Machico, sendo o mais novo de cinco irmãos. A sua infância seria dividida entre Angola, ainda numa fase em que esta era uma colónia portuguesa, onde o seu pai vivia e trabalhava como pescador, e para onde foi com a mãe e os irmãos, e a ilha que o viu nascer. Em Lobito, experienciou um contacto muito direto com a liberdade e com a possibilidade de contemplar a profundidade do mar e a sua vastidão. Encantou-se com essa pureza, que sentiu a separar-se de si quando voltou para a Madeira, ainda criança, onde a sua família sentiu algumas dificuldades para reencontrar a estabilidade. O exemplo de superação dado pelos seus pais, sustentado na confiança em Deus e na sua proteção, assim como o imaginário lírico da oralidade da sua avó, ajudou-o a encontrar a sua vocação: ser um religioso, dedicando a vida a Deus e àquilo que considerava de belo — a Natureza. Também na Madeira encontrou-se com os primeiros poemas, nomeadamente de um seu conterrâneo: Herberto Helder. “No princípio era a ilha”. E assim foi. Até chegar a Sophia de Mello Breyner e a Ruy Belo, foi um instante. Ouvir o Cântico dos Cânticos — um livro de cânticos bíblicos pertencente ao Antigo Testamento — foi o impulso necessário para que a poesia ascendesse a si como o testemunho vivo de Deus.

A amizade não se alimenta de encontros episódicos ou de feitos extraordinários. A amizade é um contínuo. Tem sabor a vida quotidiana, a espaços domésticos, a pão repartido, a horas vulgares, a intimidade, a conversas lentas, a tempo gasto com detalhes, a risos e a lágrimas, à exposição confiada, a peripécias à volta de uma viagem ou de um dia de pesca. A amizade tem sabor a hospitalidade, a corridas atarefadas e a tempo investido na escuta.

Nenhum Caminho Será Longo (2012)

Ingressou no Seminário aos 11 anos e, aos 24, era já licenciado em Teologia pela Universidade Católica, sendo que, aos 35, se tornou padre — uma designação que sempre entendeu como uma figura de paternalidade, de cuidado, de carinho, de, à letra, pastor — na diocese do Funchal. Começavam os anos 90 e Tolentino, após a sua primeira viagem a Roma — onde deu de caras com o cinema e a escrita do italiano Pier Paolo Pasolini e com a sua irreverência — dava asas ao seu gosto pela poesia, lançando a sua primeira coleção em 1990, com “Os Dias Contados”. Dois anos depois, torna-se mestre em Ciências Bíblicas, também em Roma, e, em 2004, torna-se mesmo doutor em Teologia Bíblica, aqui pela Católica. Isto numa fase em que já estava em Lisboa de forma permanente, tendo ido para a cidade em 1995. Foi capelão da Universidade até 2000, passando para a paróquia de Santa Isabel, onde esteve dez anos, tendo, em 2010, passado a orientar os eventos da célebre Capela do Rato. Já mais ligado ao Vaticano, o auge do seu percurso pastoral é visível, em 2018, quando é nomeado arcebispo e, em simultâneo, arquivista e bibliotecário da célebre Biblioteca Apostólica Vaticana — responsável pela sua abertura aos investigadores que vinham de fora, volvida a página do seu acesso restrito. No entanto, esse acabaria por ser superado, quando, em setembro de 2019, é nomeado cardeal pelo Papa Francisco.

Ao mesmo tempo que exercia uma função pastoral, manteve-se ativo na comunidade académica, sendo professor no Seminário do Funchal e reitor do Colégio Pontifício Português, localizado em Roma. Considerado uma figura relevante neste ambiente, foi convidado para dar aulas no Brasil, na função de professor convidado, enquanto foi adquirindo funções docentes na Universidade Católica. No ano de 2012, foi mesmo nomeado vice-reitor, função que deixou de exercer quando passou a dirigir a Faculdade de Teologia. Esta ligação íntima ao mundo do conhecimento ajudou-o a tornar-se cada vez mais denotado nas suas intervenções públicas, criando um estatuto de voz bem querida entre os diversos eixos da sociedade, apesar da paulatina desintegração desta em relação à Igreja. Aliado a esta faceta uma maior presença na comunicação social, tornou-se o responsável por esta mediação entre a Igreja e a esfera social e cultural do país ao assumir-se como o primeiro diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, uma pasta criada em 2004 pela Conferência Episcopal Portuguesa.

O amor é o verdadeiro despertador dos sentidos. As diversas patologias dos sentidos que anteriormente revisitámos mostram como, quando o amor está ausente, a nossa vitalidade hiberna. Uma das crises mais graves da nossa época é a separação entre conhecimento e amor. A mística dos sentidos, porém, busca aquela ciência que só se obtém amando. Amar significa abrir-se, romper o círculo do isolamento, habitar esse milagre que é conseguirmos estar plenamente connosco e com o outro. O amor é o degelo.

“A Mística do Instante” (2014)

Esta simbiose entre a cultura e a Igreja tornou Tolentino numa figura cada vez mais querida também na própria hierarquia da Igreja. Em 2011, foi nomeado para fazer parte do Conselho Pontifício para a Cultura, no qual foi um dos responsáveis, em 2018, pela orientação de exercícios espirituais que foram feitos na fase da Quaresma, que antecede as celebrações da Páscoa. Para isso, não só recorreu às escrituras bíblicas, mas também a um importante rol de autores, mesclando figuras como Fernando Pessoa ou Clarice Lispector. Foram reflexões que passaram a livro em “Elogio da Sede” (2018), contado com um prefácio do próprio Papa Francisco. Este é só um dos muitos trabalhos literários que Tolentino lançou, num repertório que conta com ensaios, sermões e reflexões de cariz espiritual e até antropológico.

O destaque para “O Hipopótamo de Deus”, de 2010, “O Tesouro Escondido” e “Pai Nosso Que Estais na Terra”, de 2011, “Nenhum Caminho Será Longo”, de 2012, “A Mística do Instante”, de 2014, e “O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas”, de 2017, entre outros que continua a escrever. Aliado a este, claro está, eis a poesia, com “Baldios”, de 1999, “A Noite Abre Meus Olhos”, de 2010 e “A Papoila e o Monge”, de 2013, a serem as suas principais obras neste capítulo. É neste percurso que se vem diferenciando com a proximidade que se sente da sua parte em relação ao mundo da literatura e do cinema, procurando posicionar a figura de Deus e as instâncias da Igreja no diálogo sobre o quotidiano e a vida singular e plural. A Bíblia é o seu grande referencial, do qual parte para as suas próprias considerações, sempre com a consciência da importância da cultura para esta reconfiguração da Igreja, que o madeirense procura tornar mais presente, descobrindo o seu espaço e a capacidade da sua atuação.

Tolentino Mendonça é alguém que procura, desta forma, dotar a espiritualidade cristã de uma utilidade perdida com o passar das décadas e com o declinar da importância da Igreja na sociedade. A sua busca pela essência da vida e do espírito é um caminho trilhado com o suporte da oração, que convida a essa reflexão, sempre com os olhos voltados a Deus e à sua atuação nas pequenas coisas, no mais ínfimo mas, ao mesmo tempo, maior. A sua admiração aos enfants terribles do mundo da cultura, como Pasolini, Adília Lopes ou até a cantora Patti Smith, ajudou-o a descortinar uma via pouco convencional de comunicar com Deus e com os seus valores. A cultura e a religião são um só caminho, uma unidade de múltiplas experiências, resultante de procurar e de conseguir permanecer mesmo perante o silêncio. Silêncio que conseguiu encontrar e ouvir através da poesia, que lhe permite a redescoberta em busca de ser e de crer, distante da ânsia social de pertencer. Algo que procura desvendar, por mais que a teologia o ajudasse a esclarecer, mas que só o inefável e o intangível é expressão concreta e verdadeira. Mais do que o verbo, a ausência deste e a relação existente. A relação como desprendimento e, por consequência, liberdade, aquilo que tanto admirou e de que desfrutou em criança.

Da verdade do amor se meditam
relatos de viagens confissões
e sempre excede a vida
esse segredo que tanto desdém
guarda de ser dito

pouco importa em quantas derrotas
te lançou
as dores os naufrágios escondidos
com eles aprendeste a navegação
dos oceanos gelados

não se deve explicar demasiado cedo
atrás das coisas
o seu brilho cresce
sem rumor.

“Baldios” (1999)

José Tolentino Mendonça é a materialização daquilo que se entende um caminho de conjugação. A conjugação em comunhão da cultura e de Deus, da relação com o poder lírico da Bíblia e com o seu exercício pastoral, alicerçado na relação com os outros. A ternura, a confiança e a esperança que o movem a essa sua realização íntima, mas conhecida através dos seus escritos. Algo que, tanto lido como ouvido, é transversal. Tolentino é, assim, alguém que, inspirado na sua experiência pastoral, artística e cultural, tornou Deus mais audível por parte daqueles que se tinham distanciado dele. Ajudou a que aprendessem a ouvi-lo de forma mais próxima e mais adaptada àquilo que é o século XXI, perante as suas evoluções e os seus retrocessos. É este exercício que permanece como o legado mais valioso do cardeal que, nos olhos de Pessoa, de Sophia ou de Dostoievski, na realização de Pasolini ou de Abbas Kiarostami, no som de Beethoven e de Bach, encontrou Deus. Um Deus que não precisa de ser um alguém mas um algo, onde o silêncio reina na expressão daqueles que o vão exprimindo. O silêncio como relação, como amor, como prova da sua existência. O silêncio que continua a ser ouvido.

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