Júlio Dinis, do romance ao realismo

por Lucas Brandão,    12 Setembro, 2017
Júlio Dinis, do romance ao realismo
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Júlio Dinis foi um dos mais notórios escritores portugueses. Apesar de deter uma bibliografia curta em número, alimentou a sua necessidade de escrever e de criar com o ofício da cura do físico e da alma. Era, desta feita, médico, não só anatómico, como também literário. O seu registo literário, incólume e escorreito, deixou-se eternizar pelas entranhas nortenhas, região onde cresceu e exerceu a medicina. Uma vida curta, mas impactante, e suficiente para se dar de corpo e alma à cidade do Porto, onde ficou perpetuado de várias formas, tanto pelo dom da palavra, como pela devoção em relação ao próximo.

Joaquim Guilherme Gomes Coelho nasceu na cidade do Porto, no dia 14 de novembro de 1839, sendo o mais novo filho do cirurgião José Joaquim, e da descendente anglo-irlandesa Ana Constança Potter. A sua mãe faleceu quando o jovem tinha, somente, seis anos, vitimado por uma tuberculose, isto sem antes ser batizado na Igreja de São Nicolau. A formação decorreu, essencialmente, em torno da cidade do Porto, tendo crescido e frequentado a primária em Miragaia, tendo firmado a sua licenciatura em medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, concluindo-o aos 22 anos. A dissertação que defendeu incidiu na área da cirurgia, de seu título “Da Importância dos Estudos Meteorológicos para a Medicina e Especialmente de Suas Aplicações no Ramo Cirúrgico”. Os motivos pelos quais assumiu esta tese foi, precisamente, pela doença que havia abatido a sua mãe, e que condicionou os descendentes desta nos anos subsequentes. Do pouco que se conhece da sua vida pessoal, muito está plasmado na correspondência que estabelecia com familiares seus, como a sua madrinha Ritinha, e a sobrinha Aninhas, onde até emprega alguns termos próprios da cidade litoral onde viria a viver, cidade essa que seria fonte de várias das suas referências narrativas.

Com isto, e por motivos de saúde, teve de sair da cidade portuense, vivendo em Ovar, e, depois, na ilha da Madeira, tempos nos quais não pode exercer medicina. Para trás, ficou a ambição de ser professor, considerando a medicina uma área de enorme responsabilidade, e até de alguma desumanidade. Dessa feita, redescobriu o seu prazer pela criação literária, ofício a que deu ênfase neste período. Antes, ainda em tempos de estudante, havia colaborado com o grupo teatral Cenáculo, para o qual redigiu duas peças (“O Bolo Quente”, e “O Casamento da Condessa da Amieira”), e onde chegou a representar. Nas residências onde esteve, foi abordando as gentes de lá, tentando perceber quais eram as suas crenças, as suas posições, os seus hábitos, os seus afazeres. Tudo ebulia na sua habitual secretária, onde se punha a escrever com a imaginação, mas sempre à luz daquilo que recebia da conversa com o outro. Essas dificuldades viriam a resultar numa tuberculose, que tentou curar em ambientes mais propícios e ligados à Natureza, mas que se revelou fatal para si e para os seus oito irmãos. No entanto, conseguiu, à terceira tentativa, entrar na escola onde havia estudado como demonstrador.

A sua vida findaria muito cedo, e sempre atormentada pela doença. Assim, no dia 12 de setembro de 1871, com 31 anos, partiria o autor de pseudónimo Júlio Dinis, morrendo na rua portuense de Costa Cabral, acompanhado pelo primo Custódio de Passos, com quem trocou correspondência amiúde. Porém, e apesar desta celeridade do seu período de vida, foram várias as obras proeminentes que redigiu até à data da sua morte. Inicialmente, surgiu “As Pupilas do Senhor Reitor” (publicado em folhetins do Jornal do Porto em 1866, e lançado em livro um ano depois), uma obra com um registo bastante coloquial e popular. O enredo sustentava-se num drama amoroso que envolvia duas irmãs órfãs, Clara e Guida, numa peripécia que coloca em causa a sua ingenuidade e inocência, para além dos moralismos sociais. Esta obra, e no parecer de Egas Moniz, deslumbra um pouco daquilo que é a interpretação dos sonhos para a compreensão do íntimo da personagem, atuando, um tanto ou quanto, como um dos precursores da própria psicanálise.

Pouco depois, o público conheceu “Uma Família Inglesa” (1868, lançado, inicialmente, nesse periódico, e que se passa num meio mais burguês e comercial), com um romance entre um comerciante inglês e uma filha de um guarda-livros de um aristocrata, que derruba mitos e convenções, para além de contar com o apoio de uma interveniente amiga desta. 1870 trouxe “Serões da Província”, que compila alguns contos, tais como “As Apreensões de uma Mãe” (um casal fortemente prejudicado pela distinção social, mas que é apoiado pela mãe do protagonista, que ajuda a educar a nora, esta analfabeta); “Os Novelos da Tia Filomena” (coloca em perspetiva o espectro da feitiçaria na sociedade popular, a partir de uma injustamente acusada mulher); e “Uma Flor de entre o Gelo” (retrata a loucura de um médico, que, apaixonado, assume a alquimia rumo ao elixir da vida longa).

A causa disto é o sermos nós uma nação pequena e pouco à moda, acanhada e bisonha nesta grande e luzidia sociedade europeia, onde por obséquio somos admitidos, dando-nos já por muito lisonjeados, quando os estrangeiros se deixam, benevolamente, admirar por nós.

Uma Família Inglesa
(1868)

Em 1871, ano do falecimento do autor, foi lançado “Os Fidalgos da Casa Mourisca”, uma das grandes obras literárias do século XIX, e uma das que foi redigida no Funchal, em conjunto com “Serões da Província”. A primeira coloca uma jovem, filha de um caseiro, como referência da narrativa romântica, arrebatando os corações dos mais abastados; e, com isto, desbasta aquilo que é a estratificação social, colocando a emoção como fulcral na dissipação dessas barreiras. Esta, que foi revista e finalizada por um primo seu, relata uma família na qual se abatem várias e diferentes tragédias, e que se resume a um avarento fidalgo e aos seus dois filhos, que vão ganhando asas com o passar dos anos. As restantes foram, predominantemente, redigidas em Ovar, cidade onde tentou debelar a sua doença.  Postumamente, “Inéditos”, “Esparsos” (em dois volumes), e “Poesias” foram organizados e publicados, mostrando um pouco mais daquilo que era o íntimo de Júlio Dinis.

As suas ligações familiares e térreas às origens são explanadas nas suas obras, brindando o romantismo com a vibração camponesa em “Morgadinha dos Canaviais” (1868), onde se apresenta uma personagem alegre, elegante, e originária da Quinta dos Canaviais, propriedade onde o autor viveu, que é cortejada mas que se entrega a um amor secreto. Por si só, livros que trazem o ruralismo, e o contraste deste com o urbanismo (em especial, apresentado em “Uma Família Inglesa”), jogando com as diversas emoções e perceções sociais e pessoais, possibilitando-lhe diferentes abordagens em relação ao próprio mundo. Este realismo provém, de certa forma, da sua formação científica, e das próprias visões apresentadas e proporcionadas pelo seu pai, ele também ligado ao método científico da medicina. Isso não o impede, todavia, que as suas narrativas findem de forma feliz e satisfatória, ao contrário de grande parte dos autores que viria a influenciar.

O perfume da saudade é como o de certas flores, que só se percebe quando de longe o recebemos. Se, iludidos, as tentamos aspirar de perto, dissipa-se.
A Morgadinha dos Canaviais (1868)

De certa, é considerado como o precursor dos autores da Geração Coimbrã, tais como Antero de Quental, e Eça de Queirós, embora se diferencie destes no sentido de harmonizar-se com o próprio presente, ao invés de se revoltar, procurando estabelecer paz com o mesmo. Para além disso, Dinis procura inserir muito da cultura popular – tradições, herança cultural, as próprias raízes geográficas e de costumes – nos seus trabalhos, por muito que não seja linear e conforme a sua prática científica. Apesar de médico, a sua literatura conhece vetores muito dissociáveis daquilo que seria uma crescente aproximação da prática literária à ciência, mesmo que o seu realismo não o determine. Um realismo que, visualizando uma nobreza aristocrata ainda bem consolidada no topo da hierarquia social, perspetiva o surgimento de uma classe trabalhadora que, fruto dos seus esforços e empreitadas, conseguem ombrear com o êxito da aristocracia. Estas distinções no meio da sociedade são, ainda, muito patentes, enquanto se procura responder às dúvidas sobre o futuro do país. As respostas surgem de um trabalho comunitário, que possibilite o desenvolvimento da consciência nacional em consonância com os desafios e as novidades do ambiente circundante.

Desta forma, as personagens construídas possuem todas um arquétipo a si associadas, mas, mais do que isso, detêm uma personalidade muito própria e bem vincada, distinta de quaisquer outras entre si. A heterogeneidade da realidade é trabalhada muito por este caminho, a partir do qual as figuras se vão moldando aos diferentes círculos sociais, dirigindo-se até onde as narrativas as levam. A própria luz iluminista incide de especial forma neste parâmetro, com as personagens, a partir da instrução e da cultura, a conhecerem novas comunidades, novos grupos sociais, adaptados para aquilo que são as recentes caraterísticas de cada um. Tudo isto contribui para uma apresentação mais precisa e complexa da realidade, permitindo o surgimento dos diferentes contrastes entre os elementos que a edificam, e ilustrando aquilo que era o panorama nacional à data. Para que tal decorra, o autor socorre-se de um forte pendor visual, ligado às descrições dos espaços e dos próprios rostos da narrativa.

Em todas as separações tem mais amargo quinhão de dores o que fica, que o que vai partir.

As Pupilas do Senhor Reitor (1867)

O pseudónimo escolhido não foi o único usado na sua literatura, usando, também, Diana de Aveleda, esta para algumas narrativas mais sentidas e pueris (precisamente “Os Novelos da Tia Filomena”), e até para algumas crónicas no próprio Diário do Porto. Esta assumia uma personalidade própria, surgindo como uma mulher culta e socialmente cumpridora, estabelecendo correspondência com uma indivídua chamada Cecília; e ficando conhecida pela discussão sobre o ser mulher com o autor Ramalho Ortigão. No entanto, Júlio Dinis assumiu-se pela toada otimista e fraterna, concebendo o amor e a esperança como parte de um plano de superior afirmação humana, encontrando, por fim, a felicidade. De muito vale a aceitação da realidade, descrevendo-a a preceito, mas não esquecendo o poder do romance, colocando-o ao dispor de um presente diferente da atmosfera novelesca. Um pendor formativo evidencia-se, a partir dos ideais iluministas de incandescer a mente e a consciência dos menos apercebidos daquilo que os rodeia. Porém, esta desvinculação de uma corrente levou-o, de certa forma, ao esquecimento, não sendo recordado no expoente do romantismo (como Almeida Garrett e Camilo Castelo Branco) ou no do realismo (Eça de Queirós).

Apesar de noções bastante intimistas e íntimas, Dinis surge como uma personalidade literária de transição entre o sentido romantismo e a descrição realista, que é fortemente vincada nas estruturações espaciais das narrativas do autor. Influenciado pelo inglês Charles Dickens, e pelo francês Honoré de Balzac, o autor acaba por apontar críticas àqueles que se excediam no discurso lírico, visando, de alguma forma, os romantistas. As suas obras conheceram amplitude em outras revistas de destaque, tais como Semana de Lisboa (finais do século XIX), e Serões (início do XX). Aqui, apresentou, para além das narrativas, poesia da sua autoria, tendo, até, assinado os primeiros da sua autoria com o seu próprio nome. Curiosamente, o mistério sobre a identidade de Júlio Dinis foi-se adensando, tornando-se num dos casos mais peculiares dos meados do século. A discussão chegou até ao próprio agregado familiar do autor, que, para o espanto do pai, se declarou como o criador desse pseudónimo. A notícia tornou-se famigerada desde então, tendo rapidamente proliferado.

As suas obras conheceram, também, adaptações para o audiovisual, em especial “As Pupilas do Senhor Reitor”, que passou para o cinema com o francês Maurice Mauriad (1924) e com Leitão de Barros (1935); “Os Fidalgos da Casa Mourisca”, em cinema com o gaulês Georges Pallu, e em televisão, numa peça de teatro (1964), e numa mini-série (1990), esta que inclui personagens contemporâneas da obra, tais como Zé do Telhado e Maria da Fonte. Para além dessas plataformas, o teatro conheceu, ainda em 1868, uma adaptação para o teatro de “As Pupilas do Senhor Reitor”, mostrando a retumbância que a obra obtinha à data. Para além disso, deu nome a uma maternidade portuense, que iniciou as suas atividades em 1939; tendo também um museu em sua honra na cidade de Ovar, na casa onde viveu no verão de 1863.

Júlio Dinis foi, e é hoje, uma das referências ao nível literário e criativo na cidade do Porto, e no país que a acolhe. Admirado pelos seus contemporâneos, foi um dos mais marcantes autores de uma geração que conheceu as paixões e as emoções no seio das convulsões sociais e industriais, sem nunca descurar os encantos da Natureza. O médico foi um dos principais ruralistas literários, usando este palco como principal recinto das suas narrativas. A união do romance ao real da consciência foi o que tornou este lúcido autor um dos mais notáveis no estudo da literatura portuguesa. De muito vale a possibilidade facultada pelo escritor de apresentar várias abordagens da realidade, encarregando-se de dar o mote para um sentido mais apetrechado e recheado da existência humana, colmatada pelo sabor do amor. A sociedade não deixa de ser uma preocupação proeminente na sua obra, estando sempre associado ao burilado trabalho dos seus cenários. Um elemento de charneira que a literatura portuguesa segue pela real ou imaginada eira. Sempre ao de leve, tal como viveu, morreu, e permaneceu.

A loucura é inseparável do homem; umas vezes toma-lhe a cabeça e deixa-lhe em paz o coração, que nunca se empenha no desvairar a que ela é arrastada; outras vezes há na cabeça a frieza da razão e ao coração desce a loucura para o perturbar com afectos.

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