#JúlioCésar: como defender a democracia?
A menos de três semanas da data marcada para a realização das eleições autárquicas portuguesas, estreou a peça #JúlioCésar, no Espaço Boutique da Cultura, em Carnide (Lisboa). A tragédia de William Shakespeare, originalmente apresentada em 1599, é alvo de uma adaptação em cena até dia 17 de Setembro.
A transposição — mais ou menos directa — de um clássico da literatura dramática para a realidade política e social contemporânea é uma fórmula commumente testada; e #JúlioCésar é uma das dramaturgias de Shakespeare que ao longo do último século mais têm sido alvo desta reapresentação à luz do contexto e dos desafios que cada dado momento histórico apresentam. É uma peça que problematiza a noção de cidadania e da democracia, e que questiona qual o papel e a forma que a responsabilidade individual e colectiva devem assumir no contexto da sociedade.
Nesta adaptação da autoria de Manuel Jerónimo — encenador — opta-se pela alteração do tom do texto — a tragédia reapresentada como comédia. A abordagem humorística é relativamente simples e despretensiosa, caricaturando as personagens e os contextos do drama original e reapresentando-os por via de uma teatralidade imediata, física e particularmente enérgica.
O pontual excesso de expansividade na expressão vocal e nos apontamentos caricaturados é compensado por uma série de opções artísticas que resultam em termos coreográficos: o elenco, composto quase exclusivamente por actrizes a representar quase exclusivamente papéis masculinos, reorganiza-se espacialmente com uma cadência hipnotizante, fazendo lembrar as formações militares romanas. Em cenas alternadas, as actrizes ora se comportam como um colectivo indiferenciado ora se pessoalizam e encarnam personalidades distintas — alternância com que talvez cada um de nós se identificará, no papel que representa no espaço público.
Também a cenografia funciona, na sua aparente simplicidade: painéis rolantes de papel, aos quais são dados os mais criativos usos ao longo da peça, rearranjando-se e compondo espaços visualmente sugestivos. Estes cenários provisórios são capazes de enquadrar cenas de tensão, violência, intimidade, tristeza e de euforia. Lugares efémeros que dão palco a interpretações expressivas e, não raro, hilariantes. Sentimo-nos entretidos praticamente do início ao fim.
As referências mais explícitas à contemporaneidade — as redes sociais, as selfies, os telemóveis, e até o crescimento da expressividade eleitoral da extrema-direita em Portugal (“perdão, em Roma”, corrige de imediato a personagem) — facilitam a compreensão da transposição histórica ali representada. Mas no final de #JúlioCésar o foco não está tanto nas conclusões imediatas nem em hipotéticas soluções, mas no contemplar dos resultados: quando a obstinação individual atropela a consciência do bem colectivo, mesmo que mascarada de boas e nobres intenções, está sentenciado o desastre comum.
O conflito versus a ponte: como defender a nossa democracia? Que acção nos cabe quando testemunhamos o perigo e pressentimos a instituição das injustiças? Algures no meio dos sorrisos e das gargalhadas entre o público, do inquieto bom humor que nos acompanha à saída da sala, algures nesse estado de espírito se encontra o esboço de um caminho: é ao questionarmo-nos que nos imaginamos e nos reescrevemos. E que bonita e livre será a oportunidade de participarmos, já no próximo dia 26 de Setembro, na construção colectiva deste espaço e tempo que é o nosso.