Kali Malone ao vivo: a contemplação do som
Era sexta-feira, e os vitrais da igreja de St. George sinalizavam o lento movimento do sol rumo a poente, numa das mais longas tardes do ano. Eram sete e meia da tarde, sensivelmente; mas na nave central daquele templo uma pequena multidão vivia fora do tempo. Kali Malone e a sua música moravam no sítio certo, convidadas pela Zé dos Bois, num palco privilegiado para a sua apresentação.
A performance inicia-se no órgão de tubos da igreja. Uma progressão lenta, uma nota nova a surgir à vez, numa harmonia efémera que ao fim de um sopro longo é substituída por outra. Kali não está à vista; o lugar destinado à organista é recuado, na lateral esquerda do altar-mor. Apenas o som quente e vibrado, soprado pelos tubos, sinaliza a sua presença, ressoando pelas paredes de pedra e pelo tecto de madeira. Soa surpreendentemente próximo, como o órgão que a artista toca em The Sacrificial Code, disco editado em 2019. Um timbre doce e quente, dotado de certa letargia, mas simultaneamente rico e inspirado.
De vez em quando um avião sobrevoa a igreja e o cemitério britânico. O seu timbre interage com o órgão, embrulhando-se e chegando a confundir-se. Ouve-se o piar dos pássaros na rua. A música drone minimalista da artista tem esta característica: torna-se camada permeável a todos os outros sons, plataforma estável que entrega ao ambiente o papel de convidado de honra. Kali Malone featuring aviões, passarinhos, e a respiração (atrás das máscaras) destes corpos sentados nos bancos da igreja.
Nos últimos segundos desta primeira etapa do concerto, o som do órgão dissipa-se progressivamente, como que se esfumando, parecendo que um motor em desaceleração, a afastar-se no céu, distante. O órgão de tubos liberta um sopro difuso, um suspiro, à medida que abandona a sua presença no espaço. Ninguém aplaude. Há solenidade no silêncio do público.
Segundos depois, à meia-luz, surge o vulto de Kali Malone a vir ocupar um lugar central, à frente de uma série de sintetizadores modulares dos quais só vemos umas quantas luzinhas vermelhas. Juntamente com as velas, com a iluminação avermelhada do fundo da igreja, e com os vitrais cada vez mais apagados, compõem o cenário escurecido onde decorrerá o restante concerto.
A segunda parte do set é dotada de uma qualidade de som de tal modo envolvente que quase simula o uso de auscultadores. Volta e meia, um sub bass potente vai sinalizando a sua presença. Mas o ambiente convocado por Kali é rico em diferentes frequências: um dark folk estranhamente quente, com uma colecção vasta de timbres que a artista vai convocando à vez, como feiticeira sónica à procura de uma combinação emocionalmente eficaz. A eletrónica da artista abarca uma diversidade de timbres: ora notas de fundo mais graves com um tom quente e aconchegante, ora apontamentos mais agudos, num processamento que não é totalmente distante do órgão de tubos, mas desta feita configurado de outra forma. Um dos sons sintetizados assemelha-se a sopros, quase como se um exército distante munido de trombetas fizesse soar um alerta.
A exploração sónica de Kali Malone é quase cinematográfica. O som cheio preenche-nos os ouvidos, sim; mas povoa-nos também a imaginação. Há um lado visual proposto pelo som. E à medida que nos embrenhamos nessa abstracta narrativa o concerto avança para o seu cume mais intenso. Neste quase desfecho surge a melodia mais emocionalmente impactante deste final de tarde, avançando em círculos, repetida a cada quinze segundos, adornada em crescendo pelos sintetizadores que a acompanham e embalam. Depois, a partir de certo ponto, e talvez no clímax do concerto, o volume sobe, os timbres graves e agudos intensificam-se, e somos como que esmagados por este estranho universo entre o sonho e o pesadelo.
A música de Kali Malone impõe-se em definitivo nesses minutos finais, num cenário pesado mas que nunca perde uma certa dimensão contemplativa. Do meu lugar, sinto a cabeça e o corpo reagirem. O meu pé bate a sentir um ritmo implícito, embora não haja percussão assumida nas vagas de som arrebatadoras. O som provoca sem ameaçar, numa doce catarse que providencia um estranho consolo.
Quando a música se cala, os aplausos do público surgem pela primeira vez. Kali faz umas vénias tímidas e contidas, e abandona o espaço. Praticamente não a vimos, propositadamente escondida nas sombras e sem que qualquer holofote tenha incidido nela ao longo da actuação. Não lhe conhecemos nenhuma palavra. Não a chegamos a conhecer para lá da emoção codificada na sua música. E mesmo aqueles que peregrinam até ao altar na tentativa de espreitar os sintetizadores não têm sucesso, ocultos que estes estão por um pano negro. O mistério efémero e marcante da arte de Kali Malone instala-se e permanece, restando o soar das vibrações na memória de quem a testemunhou.