‘Kids See Ghosts’ é uma vitória estrondosa
Acompanhar a carreira de Kanye West é acompanhar também a evolução de uma personalidade vincada, forte, e com a sua boa parte de controvérsia. O percurso deste artista tem bastantes momentos extravagantes, uns mais inócuos e outros mais dolorosos. Mas ao longo da mesma fomos também prendados com música muito boa. Há um narcisismo inerente que muitas vezes ensombra o valor da sua música e em honra desse lado mais megalómano de West vou virar as atenções para mim por um momento, para dizer que desta vez eu queria mesmo ter a minha certeza sobre a qualidade do seu novo projecto. E apesar de ter demorado posso seguramente dizer que hoje sei-o de alma e corpo: há uma (ou sete!) razões para voltarmos a acreditar plenamente nas capacidades artísticas do artista nativo de Chicago.
Kids See Ghosts é o culminar artístico de um ano especialmente proficiente para West. Foi o terceiro de cinco álbuns produzidos pelo músico e vários colaboradores em Jackson Hole, Wyoming, todos com sete músicas, mas é mais do que isso. Este álbum juntou a energia emocional do desabafo sonoro de Ye – um dos álbuns mais pessoais de West nos últimos anos – à trovosa produção do potente Daytona, os dois álbuns que o precederam. Em Kids See Ghosts, Ye aliou-se a Kid Cudi no duo com o mesmo nome e mostra que está em boa forma artística ao longo de todo o projecto. “Feel the Love” abre o álbum com um grande refrão de Cudi e um verso possante de Pusha T. Logo a seguir somos arrebatados pelos berros tresloucados de West a acompanhar fielmente a percussão esquizofrénica que progride de forma ininterrupta para uma parte mais contida, flanqueada pela melodia intoxicante do seu amigo de longa data.
Esse não é o momento Kanye West mais vincado do álbum. O prémio vai para “Freeee (Ghost Town Pt. 2)”, um espelho da personalidade excêntrica de West. Ouvimo-lo bradar alto aos céus que se sente livre de tudo o que o arrastava para baixo, num instrumental atípico deste artista e que conta com uma participação mais expressiva do que o costume de Ty Dolla $ign. Depois deste descarga de energia, “Reborn” acalma os ânimos com uma batida que nos faz lembrar instantaneamente uma música de Kid Cudi. O rapper de Cleveland mostra um óptimo retomar de forma depois de alguns problemas com depressão e pensamentos suicidas. Em “Reborn” vemo-lo renascido e a abraçar o seu futuro, acompanhando as teclas soturnas e pensativas com os seus suspiros de auto-tune. O seu refrão é assertivo e a sua estrofe sentida, mas o destaque vai para o momento confessional de Kanye West:
“I was off the meds, I was called insane
What a awesome thing, engulfed in shame
I want all the rain, I want all the pain
I want all the smoke, I want all the blame”
Há espaço para a emoção dos artistas mas os instrumentais que os acompanham também brilham mais do que nunca e West volta a mostrar o excelente ouvido para samples que o tornou popular. Isso é claro em temas como a incansável “Fire” e a dançável “4th Dimension”, que reutiliza uma parte de “What Will Santa Claus Say (When He Finds Everybody Swingin’)” de Louis Prima com uma batida de marcha imponente e impossível de ouvir parado acompanhada por um baixo heráldico, uma viagem a uma dimensão superior na companhia de uma das melhores banda sonoras de sempre. “Kids See Ghosts” é uma excepção no uso de samples mas não menos harmoniosa e é um dos pontos (mais) altos do álbum. A sua batida é discreta e etérea, com qualquer coisa de industrial e alucinogénico ziguezagueando pelo meio do metal da percussão, contando com uma participação mais poética de Yasiin Bey (previamente conhecido como Mos Def). É uma música metafórica sobre o que as crianças sabem e os mais velhos parecem ter esquecido, noções da vida adulta antes de a experienciarem.
Kids See Ghosts é uma vitória estrondosa. É uma vitória musical porque o resultado final engloba algumas das melhores músicas de Kanye West e Kid Cudi dos últimos anos. E é uma vitória emocional porque os artistas mostram que conseguiram ultrapassar as quezílias de alma que os assolavam. A arte por vezes é sofrida mas por vezes é também o celebrar de uma vida que se encontra em tranquilidade. “Cudi Montage” encerra o projecto com a força de um hino, um estandarte da subsistência que transmite uma mensagem de resistência às maldades do mundo e mostra que no final tudo está bem: a maneira como transita da crueza da sample de guitarra de Kurt Cobain para o final purificador é verdadeiramente catártica. Acaba assim Kids See Ghosts, em menos de trinta minutos, mostrando que por vezes menos é mais. Muito, muito mais.