“Kursk”, de Thomas Vinterberg: não afunda, nem excele
Thomas Vinterberg é um realizador com uma carreira inconvencional: após ter obtido sucesso com Festen (1998), filme inaugural do movimento Dogme 95 e galardoado com o Prémio do Júri no Festival de Cannes, o dinamarquês começou a dedicar-se a produções em língua inglesa cada vez maiores, sem, no entanto, ao contrário do seu compatriota e amigo Lars von Trier, com quem, aliás, coautorou o manifesto do já referido movimento, abandonar o cinema na sua língua materna. Nos últimos anos, a tendência tem sido alternar entre um e outro idioma: a Jagten (2012) seguiu-se Far From the Madding Crowd (2015), depois Kollektivet (2016) e agora Kursk, onde, apesar de a maioria das personagens ser russa, toda a gente fala em inglês – ah, a magia do cinema!
A análise simbólica dos idiomas pode constituir, assim, um bom ponto de partida para considerações formais sobre o cinema de Vinterberg, um território onde formações tipicamente associadas ao cinema independente se confundem com formulações daquele cinema dito “comercial”. Kursk segue esta tendência de uma forma destacadamente organizada, o que faz por um curioso exercício de hermenêutica ao nível do auteur. O filme abre com uma imagem de uma criança a submergir-se em água, a ela seguindo-se um braço adulto com um relógio de pulso que o jovem mergulhador olha atentamente. Os tons verdes que preenchem o espaço da tela balizado pelas proporções 5:3 são imersivos e a composição vagamente surrealista, podendo levar o espetador a perguntar-se se terá entrado na projeção correta. Não obstante o seu desvio do panorama da obra, esta imagem, na medida em que pressagia alguns dos elementos do enredo, é algo como que uma imagem-universo ou imagem-símbolo. O fôlego acabando-se, com o rapazito sobe a câmara à superfície, revelando uma casa de banho familiar e a figura paternal de Matthias Schoenaerts proclamando um novo recorde mundial de suster a respiração debaixo de água. Estamos no terreno do drama familiar, no íntimo do apertado rácio de imagem e das personagens que aprendemos viverem numa pacata vila costeira, onde os homens vivem para o mar – não enquanto pescadores, mas marinheiros – e as mulheres se ocupam dos que ficam em terra. Este drama pouco, se algo, tem para oferecer que já não tenha sido visto vezes sem conta noutros filmes semelhantes, passando pelo inevitável foco na camaradagem, a honra e a pureza de caráter. O vincado caráter inócuo da observação social, relativamente a outros filmes seus, à parte, este é o espaço próprio de Vinterberg, que filma estes quase não-eventos com uma câmara móvel e tremida, entre bruscos movimentos de umas personagens para as outras.
Chegado o dia do exercício bélico, partem os submarinistas do Kursk para o Mar de Barents e o filme, fixando as ondas, desancora os limites laterais da sua imagem, abrindo-a para as panorâmicas proporções de 2,35:1. Por muito que este truque se tenha vindo a popularizar nos últimos anos, este não foi ainda mastigado o suficiente para que perdesse todo o significado, pois, aqui, mais que uma tentativa de abarcar a grandeza do mar, esta escolha aparenta refletir a transição do modesto quotidiano rural para o gigantesco terreno da política internacional (ainda que seja falacioso apartá-los, o vínculo, ou melhor, a continuidade entre os dois é tornada particularmente evidente pela narrativa que se segue, sendo esse aspeto que me parece ser sublinhado pelo gesto), procurando dar sentido às vidas dos tripulantes da embarcação. O Kursk, sabemos, é o submarino russo, um dos primeiros do seu tipo construído após a dissolução da URSS, que no último ano do século passado afundou sem deixar para trás quaisquer sobreviventes, devido à recusa por parte das autoridades russas de ajuda por parte de vários países ocidentais. Plantando estrategicamente algumas falas, Thomas Vinterberg leva o espetador para uma visão maior desta história.
A dissolução da União Soviética significa para a Rússia uma parcial perda de soberania para o grande capital dos mercados internacionais (apesar da política de violento capitalismo de Estado bolchevique). Contudo, não querendo abdicar da sua posição de relevo na política mundial, os russos prosseguem com uma imponente ação demonstrativa para a qual, devido a este relativamente novo paradigma, não dispõem de recursos – um dos navios necessários para o salvamento fora vendido a uma empresa americana que o utiliza para levar turistas a ver o Titanic afundado “por $20.000 cada”, terrível ironia da sociedade do espetáculo. Confirmando-se a necessidade da embarcação de salvamento, gera-se uma crise cuja dimensão mediática por alguns momentos o filme navega de forma interessante, mas que, numa análise final, acaba por se revelar algo inconsequente de tão superficial a inquirição. Mais interessante é a oposição geracional quanto às políticas: a geração mais antiga adverte a segunda para que respeite as autoridades e os deixe fazer o seu trabalho; a segunda geração desde o início procura ser interventiva; a mais recente, encarnada pelo filho das personagens de Schoenaerts e Léa Seydoux e as restantes crianças que com ele se posicionam em fila na cerimónia fúnebre dos seus pais, perdeu todo o tipo de respeito pela autoridade nacional. Talvez o desprezo demonstrado pelo pequeno seja exagerado; afinal, sabemos que muita da juventude russa se deixa ainda levar pela propaganda nacionalista. De qualquer modo, a mudança é notável e, dramaticamente, este episódio resulta.
Esta última cena relatada é já apresentada nas proporções de imagem iniciais, como aliás o são todas as cenas após a descoberta dos submarinistas mortos. Contudo, a função desta nova mudança no rácio é obscura: de um ponto de vista simbólico, as repercussões políticas do evento não são perdidas no ato final e, de um ponto de vista dramático-técnico, se o objetivo era filmar o espetáculo naval, dado a maior parte das cenas em mar serem em espaços confinados do Kursk, o melhor seria até que a mudança fosse a oposta, de modo a frisar a sensação de claustrofobia (felizmente, esta não é perdida, graças à tendência para manter a lente próxima dos atores). A verdade é que, conquanto leituras semióticas possam enaltecer em parte o valor de Kursk, este continua a ser um filme maioritariamente construído segundo os trâmites dos filmes do seu género, caminhos de convenções de tal modo apertados, que nem a sensibilidade de Vinterberg neles consegue muito fazer.