‘Las Herederas’ é um belo filme sobre a condição feminina no Paraguai
Aparentemente, confirma-se a tendência da programação da Berlinale em privilegiar filmes com temática feminina, ainda que com escolhas de qualidade bem variável. O dia de ontem começou bem com a proposta do realizador paraguaio Marcelo Martinessi, com Las Herederas. Percebe-se um cinema muito seguro e empenhado numa revisão do tecido social local. Ele que já convenceu o júri em Veneza quando venceu o Leão de Ouro com a sua curta documental The Lost Voice, em 2016.
Segue aqui uma deriva de auscultação da realidade patriarcal do seu país, assente num filme integralmente defendido por mulheres, e em que os escassos homens que aparecem são meros figurantes. A história assenta em duas amigas que obviamente tiveram uma longa vida em comum, embora Martinessi não se tenha sentido forçado a explicar a sua relação, tal como várias outras coisas no filme, deixando esses espaços em branco para o espetador refletir e eventualmente o preencher.
Chela (a estreante Ana Brun) e Chiquita (atriz com larga experiência no teatro) são duas sexagenárias que perceberam que a vida desafogada do passado terá de passar a ser enquadrada por uma nova realidade e um novo suporte financeiro. Ao serem forçadas a sair de casa, percebem também uma nova realidade. Chela acaba por utilizar o seu carro para transportar amigas e conhecidas acabando por ter aí alguma compensação financeira. Ao passo que Chiquita, incapaz de pagar as suas dúvidas é forçada a conhecer a realidade de uma prisão para mulheres. No fundo, Chela sai de casa e Chiquita entra para outra realidade, mas onde acaba por ser também a ‘rainha’ que era em casa.
Martinessi ausculta a pulsação da realidade feminina, caracterizada por ser muito fechada, propondo estas novas possibilidades, ainda que não abdicando de um cinema que mantém esse lado fechado. Talvez por isso, na primeira imagem do filme a câmara apareça a espreitar o que se passa, com algum pudor, como se tivesse medo de sair da escuridão. Mas é precisamente essa escuridão que absorve a condição social no seu país e que nos é descrito de uma forma muito subtil, sem necessitar de fazer passar o peso da mensagem de eternizada e vincada sociedade. Foi uma bela surpresa de um cineasta que confirma o que de melhor se esperava.
Las Herederas passa a ser assim o primeiro grande filme da competição.
Artigo escrito por Paulo Portugal em parceria com Insider.pt