Latim e grego nas escolas portuguesas
Ficcionista, ensaísta, poeta, tradutor, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu a Ilíada e a Odisseia de Homero.
Latim e Grego nas escolas portuguesas: oração por um regresso urgente no futuro (com um pedido de desculpa pelo passado)
A melhor coisa, para mim, de ter ganhado o Prémio Pessoa em 2016 foi a possibilidade de fazer um discurso público, na presença do Presidente da República, do Ministro da Educação e de muitos outros membros do governo, em que centrei o tema em algo que é para mim – intelectualmente, entenda-se – um caso de vida e de morte. Temos de fazer tudo ao nosso alcance para não deixar morrer, no nosso país, o ensino das línguas clássicas. E o lugar onde esse ensino tem de começar é o Ensino Secundário. Iniciar o estudo destas línguas no 1.º ano da universidade já é tarde para permitir uma boa proficiência. Dir-se-á que o mesmo acontece hoje com Francês e Alemão. Que situação mais trágica. Meu Deus.
Como chegámos até aqui? Como é que pessoas da minha geração ainda podiam chegar à Universidade em 1984 com 8 anos de Francês e de Inglês; e com 3 anos de Grego, Latim e Alemão (correspondendo ao 10.º, 11.º e 12.º ano)? O que nos levou a matar o ensino das línguas, tanto antigas quanto modernas?
Torna-se confrangedor, hoje, na Universidade, termos estudantes Erasmus que se inscrevem em cadeiras com nomes como «Latim VI» ou «Grego VI», as mais avançadas leccionadas em Coimbra (por exemplo), trazendo esses estudantes italianos, alemães ou outros uma escolaridade em que, antes de entrarem na Universidade, tinham tido 5 ou mais anos de Latim. Imaginem agora a cara de espanto desses alunos ao perceberem que o Latim ou o Grego mais avançados que leccionamos em Portugal correspondem ao 6.º semestre de aprendizagem contando desde o grau zero.
O facto de os nossos alunos começarem Latim e Grego na Universidade traz dois problemas enormes na aprendizagem. O primeiro problema é que começam estas línguas numa idade em que a aprendizagem de uma língua nova não é tão fácil como seria aos 12 ou 13 anos. O segundo problema é que estão a fazer licenciaturas de 3 anos (obrigado, Bolonha…). Nestes 3 anos, nos 6 semestres de estudo concentrado, não há tempo a perder. A aprendizagem não pode seguir um ritmo calmo, divertido e variado (vejam os manuais utilizados para ensinar Latim e Grego no Ensino Secundário do Reino Unido: que delícia seguir aquele percurso, cada coisa de sua vez, construindo devagar, mas solidamente, um edifício de saber no cérebro das alunas e alunos). Logo nos primeiros níveis de Latim e de Grego na Universidade – e por muito que tentemos facilitar hoje as coisas, como em tudo – é preciso ensinar e aprender «logo a matar». Não há tempo para ir construindo o edifício devagarinho, pedra a pedra, tijolo a tijolo. Às vezes é preciso erguer uma parede inteira no espaço de uma semana. Claro que os estudantes acham Latim e Grego difícil na Universidade. Não haveriam de achar?
Um problema enorme que se tem levantado desde o 25 de Abril, no que toca ao lugar das línguas clássicas na escolaridade portuguesa, é o problema do diálogo. Uma suposta conquista da liberdade de Abril nas nossas Faculdades de Letras foi a possibilidade de se dizer alto e bom som que as línguas clássicas não devem ser obrigatórias porque (alegadamente) «não servem de nada». Dentro das Faculdades de Letras (e isso eu vi e vejo pessoalmente nas duas faculdades em que leccionei), esta posição é muitas vezes defendida por colegas das línguas modernas, dos Estudos Portugueses, da Linguística Portuguesa. E são colegas que, na maior parte dos casos, estudaram Latim, tanto no Ensino Secundário como na Universidade. E a imagem com que ficaram desse estudo de Latim era, para citar uma antiga colega minha de Linguística da Faculdade de Letras de Lisboa, «aulas em que não aprendi nada, que não serviam de nada e que simplesmente odiei» (declaração pública numa reunião de faculdade nos anos 90).
Criou-se a ideia de que, para efectuar a libertação completa do passado pré 25 de Abril (isto porque, no sistema educativo do fascismo português, as línguas clássicas era inassaltáveis), era preciso deitar fora o elemento que estava a impedir os cursos de Línguas e Literaturas Modernas de serem modernos: era preciso deitar fora o Latim como elemento obrigatório de uma formação em línguas românicas. E se o Grego morresse por arrasto, tudo bem. Também ouvi um colega catedrático dizer em público no final dos anos 80 «sinceramente, mais vale deixar o Grego morrer».
Bom, mas enquanto eu tiver vida e saúde vou continuar a dizer bem alto que o Latim e o Grego NÃO podem morrer. Precisamos demais destas duas línguas, por razões que eu já escrevi e repisei vezes sem conta – e por isso não as vou repisar de novo aqui. Só lembrarei que, ainda no reinado de D. João V, 30% dos livros publicados em Portugal eram escritos em Latim. Livros de História de Portugal, de Teologia, de Filosofia, de Literatura, de Poesia. Se era essa a situação na primeira metade do século XVIII, agora imagem o que seria nos séculos anteriores. Pôr o estudo da história da cultura portuguesa nas mãos de gerações, como as actuais, que não lêem Latim, é, como facilmente imaginam, uma grande gargalhada. Ou vamos pôr essa investigação nas mãos dos alunos Erasmus alemães e italianos que nos chegam com uma formação em Latim espantosa? Não damos nós essa formação aos nossos alunos porquê?
Por outro lado, enquanto eu tiver vida e saúde também não vou escamotear o facto de os próprios classicistas portugueses de gerações anteriores (e, quem sabe, também das actuais) terem sido também culpados pela situação de uma professora catedrática da área de Português da FLUL, uma das mulheres mais inteligentes que já conheci na minha vida, ter dito em público que não lhe serviu de nada aprender Latim na FLUL porque, na realidade, não se aprendia nada.
Contavam-se anedotas mirabolantes sobre o que eram algumas aulas de Latim antes do 25 de Abril: um catedrático da FLUL disse-me que teve uma professora de Latim que centrou a leccionação de um ano inteiro na feitura, apenas, de UMA retroversão. Enfim, as histórias são tantas (e tão absurdas) que nem ficava bem contá-las aqui. Também seria penoso falar de quanto os professores de Latim e de Grego do Ensino Secundário, em décadas passadas, contribuíram eles próprios para acabar com o ensino dessas línguas. No único ano em que eu fui professor do Ensino Secundário, a delegada do meu grupo (Português, Latim, Grego) delegou em mim a correcção dos exames de 12.º de Grego na escola (uma das mais prestigiadas de Lisboa), porque ela confessava já nem se lembrar do alfabeto grego.
«Mas deixemos isso» (como dizia uma querida professora minha da FLUL). Interessa reter aqui a ideia de que, em muitos momentos do passado, os próprios classicistas deram muitos tiros no pé, encarregando-se de dar uma imagem negativa da sua especialidade. Aliás, somos vistos, ainda hoje, como pessoas anacrónicas a remarem quixotescamente contra a maré. Os nossos críticos pensam que queremos de volta a missa em Latim com o padre de costas para o público! Que queremos de volta a ortografia do tempo da monarquia! Que queremos abolir toda a terminologia gramatical contemporânea! Que somos todos, como se diz em Latim, cegos «elogiadores do tempo passado» (laudatores temporis acti)! Que somos aquelas pessoas irritantes que dizem que não é «rúbrica», mas sim «rubrica»; e que vêm dar a notícia incómoda de que o plural de «ratio» não é «ratios» (como se diz alegremente nos Conselhos Científicos das Universidades portuguesas), mas sim «rationes». Sim, nestes dois casos, admito que somos essas pessoas irritantes – mas, nestes casos, é preciso ver, com a razão do nosso lado.
Na verdade, não queremos de volta a missa em Latim, nem ortografias anacrónicas, nem queremos a morte dos Estudos de Género/Feministas/Comparatistas/Sociolinguísticos etc. etc. etc. Achamos que na Universidade portuguesa tudo tem o seu lugar: desde as áreas do saber mais contemporâneas e «cutting edge» (não somos contra o inglês!!) às mais tradicionais, como Arqueologia e Epigrafia Romanas ou Filosofia Medieval. E achamos que, na Universidade portuguesa, a História da cultura portuguesa das épocas medieval, renascentista, barroca deve assumir um lugar fundamental.
Agora, para aulas de Arqueologia Romana ou de Filosofia Medieval (por exemplo) terem absoluta consistência científica, é preciso que docentes e discentes saibam Latim. Para termos uma visão clara e séria da história da cultura portuguesa, é preciso ler essas toneladas de livros portugueses em Latim que (muitos deles) nunca ninguém leu. Ora, para isso, não bastam 3 anos de Latim na Universidade: a aprendizagem tem de começar na Escola Secundária.