Leïla Slimani e a pulsão incontrolável de uma ninfomaníaca
Pode alguém, vivendo dentro de um vício e de uma pulsão que só se acalmam quando satisfeitos – e mesmo aí só durante um curto espaço de tempo – alguma vez aspirar a uma libertação? E pode a razão misturar-se com algumas dessas escolhas aparentemente irracionais?
No Jardim do Ogre, agora publicado em Portugal pela Alfaguara, é a primeira obra de Leïla Slimani, a autora franco-marroquina que se consagrou nacional e internacionalmente com Canção Doce (Alfaguara, 2017), com o qual venceu o famigerado Prémio Goncourt. Mesmo partilhando com Canção Doce algumas das temáticas macabras, enquanto nesse livro há morte, No Jardim do Ogre traz compulsão violenta sob a forma sexual. Conta-nos a história de Adèle, uma jornalista parisiense, casada e com um filho, que não consegue conter as suas pulsões sexuais e que, portanto, se envolve com todo o tipo de homens. Uma ninfomaníaca, no fundo.
As ditas causas são facilmente desvendáveis, tão facilmente se relacionam com o seio familiar completamente esventrado que conheceu ao longo do seu crescimento, com uma mãe que não lhe dava qualquer afecto e que não respeitava a sua intimidade – lendo-lhe os diários sem qualquer autorização – e um pai que, apesar da consideração que Adèle afirma ter por ele ao longo do livro, nos soa estranhamente ausente.
No entanto, essa pulsão de Adèle não é facilmente vislumbrável do exterior, todos a vêm como uma mulher recatada, calada, tímida, quase sem chama; aquela que ela hesita mostrar com medo que, à mais pequena amostra do fogo que tem dentro de si, se siga um incêndio capaz de tudo fazer ruir. Tenta imiscuir-se socialmente, pois no fundo só quer ser uma mulher normal, mas não é nunca capaz de pôr essas compulsões de lado porque, no fundo, a sua condição a deixa profundamente só, encerrada na sua aparência doce, face a uma melancolia violenta que a impele a consumir, numa espécie de vício frenético, relações descartáveis que nada lhe trazem emocionalmente senão um meio de saciar a sua pulsão, envolvendo-se sexualmente com esses homens não pelo prazer que eles lhe dão, mas pela dor que lhe tiram, pela possibilidade de voltar a adiar, por mais uns momentos, a necessidade de novamente se envolver.
A narrativa não é, portanto, especialmente complexa, mas, ainda que caminhando por alguns lugares comuns, com a sua escrita simples e directa, Leïla Slimani consegue não cair na vulgaridade, tanto em termos temáticos como na forma através da qual caracteriza Adèle e a sua inevitável queda. As evidências são imensas e desde o início se tem a noção que é a queda de uma mulher que se observa; que, mais cedo ou mais tarde, o seu mundo familiar irá ruir.
A relação com o seu marido, Richard, tem vindo, desde há muito, a unir a falta de intimidade sexual do casal a uma crescente desconexão e, nesse sentido, há também uma muito clara oposição entre os dois ambientes que são os preferenciais para cada um dos membros do casal. Por um lado, o ambiente urbano e frenético da cidade de Paris – onde Adèle é capaz de encontrar, quase ao virar da esquina, alguém com quem se envolver -, e por outro o retiro para uma casa de campo que é o sonho de vida de Richard, que, completamente saturado dessa mesma agitação parisiense, tenciona despedir-se do hospital onde trabalha para aceitar o cargo de sócio numa clínica em Lisieux, no norte de França, um ambiente bucólico propício ao cuidar de um filho que, a Adèle, acaba por parecer quase sempre mais um empecilho que propriamente o repositório de um amor maternal que, provavelmente, nunca desejou, que abraçou como mais um passo face à normalidade, uma tentativa de distanciamento das suas pulsões.
No Jardim do Ogre é, portanto, acima de tudo, um estudo de caso, uma caracterização de Adèle e do que na sua cabeça flui, da irracionalidade (ou não) do que faz, e dessa forma olhamos para os seus comportamentos quase com um distanciamento clínico, ao mesmo tempo compreensivo e angustiante, numa busca pelo significado humano de uma compulsão como esta.