Leonardo da Vinci e Portugal: um campo de investigação artístico
Um artista figlio della Natura.
Ao morrer no dia 2 de Maio de 1519 no Castelo em Amboise, no Loire, tendo por derradeira companhia o próprio rei de França, Francisco I, segundo diz a tradição recolhida pelo tratadista Giorgio Vasari e muito explorada depois pelo Romantismo (passam agora exactamente quinhentos anos sobre o acontecimento…), Leonardo da Vinci (1452-1519) era já considerado uma das maiores referências vivas no campo da cultura e das artes à escala planetária. Pintor, escultor, arquitecto, urbanista, engenheiro e, simultaneamente, também humanista e inventor celebrado, homem da ciência e da matemática, grande estudioso da anatomia, da natureza e da botânica, com cartas dadas no campo da hidráulica e das artes da guerra, poeta e tratadista das artes e, ainda, músico de talento, arqueólogo, canhoto disléxico com larga produção diarística, aventureiro de espírito, homem rebelde e andarilho sempre envolto em elocubrações científicas, e fidelíssimo ao culto de uma beleza ideal, Leonardo bem pode ser considerado o arquétipo do homem novo do Renascimento, o mais sedutor e inspirado expoente dos valores do seu tempo. No seu Tempio della Pittura (1590), o tratadista Giovan Paolo Lomazzo sumariza esse generalizado elogio: «è stato superiore a tutti, tal che in una parola possiamo dire che l’lume di Leonardo sia divino».
Ao artista, que se definia como «figlio della natura», se deve o contributo essencial para a redefinição e dignificação das artes, segundo as notas soltas que deixou, e que foram organizadas depois pelo discípulo Francesco Melzi, e que vieram a constituir o chamado Trattato della Pittura (só dado à estampa em 1651 por inciativa de Cassiano dal Pozzo, com ilustrações do pintor Nicolas Poussin). Aí considera a Pintura a mais nobre e elevada das belas artes e define-a assim: «composizione di luce e di tenebre insieme mista colle diverse qualità di tutti i colori semplici e composti». São esses os valores estéticos e plásticos que Leonardo soube, bem cedo, utilizar nas primeiras encomendas e que explicam o impacto surpreendente das suas obras juvenis, face às do seu mestre florentino Andrea del Verrochio (1435-1488), que a tradição conta ter sido roído de inveja por se ver ultrapassado pelo jovem discípulo depois de ver o Baptismo de Cristo (Uffizi), de c. 1473, mais aplaudido justamente pelas adições apostas por Leonardo, desde a graziae venustà do anjo à esquerda ao inovador sfumato da paisagem fundeira… As obras de pintura que produz por esses anos, como a Anunciação (também nos Uffizi), com a sua elaborada perspectiva científica, impõem-no como artista muito acima da mediania. Por isso os elogios se multiplicam: Baldassare Castiglione (1528) elogia os «strani concetti e nuove chimere» de um dos «primi pittori del mondo», o português Francisco de Holanda (1548) coloca-o em segundo lugar entre as Águias da Pintura, Giorgio Vasari (1568) chama-lhe «veramente mirabile e celeste», G. P. Lomazzo (1590) destaca-lhe «nobbiltà dell’animo, facilità, chiarezza d’immaginare, natura di sapere», com que atinge «lume divino», e o humanista Paolo Giovio, médico de Clemente VII, refere-se-lhe como um verdadeiro «miracolo della natura».
A singularidade de obra e de percurso de Leonardo, ligada ao carácter excêntrico e temperamental do seu perfil, valorizaram a imagem meio misteriosa mas com um peso inegavelmente sedutor de um artista múltiplo com recursos infinitos. De facto, face aos artistas e intelectuais do século XVI, Leonardo podia ser visto como um gigante, mesmo que os seus programas, quadros, frescos e projectos de engenharia mal saíssem do papel e só pontualmente passassem à prática. O conhecimento da sua obra só se generalizou, fora de pequenos círculos académicos, com os trabalhos de «descoberta» do legado leonardesco, tanto artístico como científico, nos séculos XVII e XVIII (com a edição do tratado em 1651, como se disse, e com estudos de André Félibien e Luigi Lanzi, por exemplo, no caso da pintura e do desenho).
Os elogios que recebe, mais pelo exemplo de vida do que pela obra finalizada, que é escassa, dadas as inquietações de génio que o fizeram deixar inacabados inúmeros projectos de arte ou de ciência, reflectem o impacto das ideias novas com que fervilhou a agenda temática dos círculos de ‘literati’ um pouco por toda a Itália e, a seguir, um pouco por toda a Europa. E o lendário também se sobrepôs, com toda a naturalidade: caso da história de Francisco I, seu acompanhante no leito de morte. O rei de França, que muito admirava Leonardo, e que, após reconquistar Milão em Outubro de 1515, lhe encomendou um engenhoso leão mecânico que andava e que, abrindo o peito, mostrava aos atónitos presentes um ramo de lírios, ofereceu-lhe o solar de Clos Lucé, em Amboise, situado próximo ao castelo residencial do monarca, no vale do Loire. Aqui trabalhou os três últimos anos de vida, na companhia do citado discípulo Francesco Melzi, auferindo de uma generosa pensão de 10.000 escudos, e à hora da morte teria sido consolado pelo próprio rei, que promoveu as mais condignas homenagens em sua memória.
Leonardo e a dignificação das Artes.
A dignificação das artes e o conceito de ‘liberalidade’ criadora, base emancipatória para um novo estatuto social dos artistas, a que muitos aspiravam, contam-se entre as matérias inovadoras, tão abundantemente discutidas ao tempo, que cabe tributar ao pensamento de Leonardo e que perdurarão pelos séculos vindouros, em debates nas academias e tertúlias. Ele foi absolutamente original, seguindo nesse aspecto o legado de León Battista Alberti (1404-1472), na consolidação de um pensamento de reivindicação estatutária por parte de artistas, mecenas e outras figuras ligadas ao mercado das artes, primeiro nas esferas ilustres que frequentou entre FIorença, Roma, Milão, Mântua, Veneza, e em França, e depois, já no século XVII, com a edição do seu tratado, o que tanto acolhimento terá nos meios artísticos europeus. Multiplicam-se exemplos de elogiosas referências ao legado leonardesco (tantas vezes deslocados a respeito de determinados artistas que com despropósito foram cotejados com estilemas seus, entre imitadores e epígonos), e ao seu papel de defensor da liberalità, existindo uma vasta ‘fortuna crítica’ a esse respeito.
A busca de perfeição em estado puro, sequaz dessa ‘scintilla divina’ de que falava o citado Leon Battista Alberti, e que vai aprofundar à luz dos princípios neo-platónicos, permitiu também a Leonardo assumir um papel de verdadeiro pioneirismo. Tal sente-se bem na resolução dos chamados «retratos ideais» que, como diz o historiador de arte Fernando António Baptista Pereira a propósito da Mona Lisa (Louvre) e do Salvator Mundi (col. particular), reflectem «a procura da perfeição absoluta da forma e da cor, e a máxima capacidade de materialização do significado e da sua expressão pela figura». Também lhe cabe tributar a descoberta do ‘sfumato’, técnica de suave modelação dos segundos planos em vaporosos efeitos de afastamento, com base nos mais evoluídos estudos ópticos e perspécticos que levou a efeito. Esta técnica, usada para gerar gradações entre os tons, serviu a Leonardo para a valorizar e distinguir face aos três outros cânones da pintura do Renascimento: o chiaroscuro (claro-escuro), o unione (variações de cores vibrantes e vivas) e o cangiante (fusão de cores).
Portugal não está alheado desta fortuna elogiosa a Leonardo. Segundo a historiadora de arte Sylvie Deswarte, grande figura dos estudos holandianos, coube ao teórico das artes Francisco de Holanda (1517/18-1584) o duplo papel de possuidor de uma obra de Leonardo (como adiante se verá) e de difusor de alguns de novos conceitos estéticos no panorama artístico nacional. No tratado Da Pintura Antigua (1584), ao listar a «Taboa dos Famosos Pintores» do seu tempo, a que chama Águias da Pintura, o artista-escritor português dá naturalmente a primazia a Miguel Ângelo (1475-1564), sendo no segundo lugar tributado Leonardo, de quem diz o seguinte: «A segunda [palma] dou a LIONARDO DE VINCE, que foi o primeiro que fez ousadamente a sombra». Ou seja, no reinado de D. João III já havia a constatação, em círculos de corte, do contributo que o celebrado florentino dera para a nobre arte do Desenho, fonte primeira de todas as outras artes.
Conhecendo-se as crescentes relações da arte portuguesa com os centros italianos, na primeira metade do século XVI, é de estimar que alguma coisa do legado leonardesco tivesse importância em solo nacional. As teses de liberalidade artística, que vingarão paulatinamente com o reinado de D. João III e a regência de D. Sebastião, contam-se entre essas ressonâncias. Mas também, em algumas boas pinturas da fase proto-maneirista, como no caso do pintor Diogo de Contreiras (c. 1500-1563), se admiram arrogados sfumatos, construídos em touches e manchas vigorosas, que se afastam dos segundos planos da tradição flamenga e podemos ser vistos, de alguma forma, como declinações leonardescas. Citem-se, a propósito, os fundos de dois excelentes painéis de meados do século XVI: o Calvário da igreja de São Quintino (Sobral de Monte Agraço) e a Pregação de São João Baptista de São Bento de Cástris (hoje no MNAA). É certo que a técnica de vaporosos sfumatos que valorizam a obra de alguns dos melhores pintores portugueses entre o Renascimento e o Maneirismo se explica pelo legado da geração de Gregório Lopes, tão marcada pela tradição flamenga, mas não é de excluir (no caso do citado Contreiras, por exemplos) que, por força de um crescente italianismo, algo das experiências picturais leonardescas pudessem chegar então à arte portuguesa…
No campo da arquitectura militar essa influência parece mais visível. Leonardo foi conselheiro militar do Papa Leão X entre 1513 e 1516, e deixou muitos desenhos e projectos de fortalezas, que corriam em círculos influentes. De há muito se discutem (pelos estudos de John Bury, George Kubler, José Eduardo Horta Correia, Rafael Moreira, Mário Jorge Barroca, Paulo Pereira, Fernando Grilo e outros historiadores de arte) a possível ou mesmo provável inspiração do Castelo Roqueiro de Vila Viçosa e do Castelo palatino de Évora-monte em modelos desenhados por Leonardo. O modelo de planta sub-quadrada dotada de torreões ultra-semi-circulares em ângulos opostos, no primeiro caso (atribuído por Moreira ao italiano Benedetto de Ravena), e a estrutura de quatro torreões cilíndricos definindo um perímetro quadrangular de erudita vinculação italiana (por Francisco e Diogo de Arruda), têm afinidades iniludíveis com os projectos de Da Vinci no domínio da arquitectura militar.
Também no campo da escultura renascentista portuguesa poderão ser entrevistas ressonâncias da arte leonardesca. Num livro de Francisco Bilou (Nicolau Chanterene – um insigne escultor em Évora, 1532-1542, Edições Colibri, no prelo), este historiador de arte e técnico do Museu de Évora, ao referir-se às obras realizadas por esse artista na igreja da Graça de Évora, aponta com oportunidade outra ressonância leonardesca na arte portuguesa: «(…) Nas três janelas usa o escultor francês todos os seus recursos plásticos: jambas muito perspetivadas, teto de caixotões e espantosa decoração de grutescos fitomórficos, tudo num gosto classicista (…). As suas citações são de vária proveniência, como Rafael Moreira propõe, com destaque para a leitura da edição de 1534 do Imperatorum Et Caesarum Vitae. Destaque para a possível representação do imperador Galba que, não obstante glosar a efigie de alguma espécie monetária ou gravura livresca, não deixa de ser curiosa a semelhança da fácies aí representada com os desenhos de cabeças grotescas de Leonardo da Vinci».
Pinturas e desenhos de Leonardo em Portugal.
O mercado artístico nacional possuiu obras alegadamente tributadas a Leonardo da Vinci, ainda que, na sua maioria, se tratasse de peças epigonais, atribuídas sem qualquer base científica.
Segundo a já citada Sylvie Deswarte, Francisco de Holanda possuíu, desde 1537 até à morte em 1584, um precioso desenho de Leonardo, que chegou aos nossos dias. Alguns quadros com duvidosa atribuição passaram pelo mercado português. O célebre ‘connoisseur’ prussiano Atanazio Raczynski assinalou, no seu livro Les Arts en Portugal (Paris, 1848), a existência de um pequeno painel dado como de autoria de Leonardo existente na galeria do Marquês de Tancos, e destacou também, como peça mais interessante, uma Sagrada Família que admirou na casa de Lord Howard de Walden, em Lisboa, à qual não regateou elogios, julgando poder relacioná-la com o estilo do citado Francesco Melzi, senão com o de Bernardino Luini, dois dos bons discípulos de Leonardo.
Também passou a breve trecho pelo mercado português, relacionado com uma das boas colecções de arte do século XIX, uma óptima pintura de Leonardo, executada em 1504-1507, que representa o Salvator Mundi. O quadro integrou a colecção iniciada por Sir Francis Cook no Palácio de Monserrate em Sintra, sendo hoje considerado pela generalidade dos especialistas como um original de Leonardo da Vinci. Depois de extensamente restaurado, foi adquirido pelo príncipe Bin Salman, da Arábia Saudita, por preço astronómico, com destino ao Louvre de Abu Dhabi. A peça fora comprado por Sir Frederick Cook e à data em que esteve em Doughty House andou atribuído, sob parecer de peritos como J. C. Robinson, ao pintor Bernardino Luini (c. 1480-1532), discípulo e seguidor de Leonardo. Ao reconstituem em livro recente as glórias e misérias dessa imponente colecção artística, Vera Mariz e Maria João Neto (Monserrate Revisitado. A Coleção Cook em Portugal. 200 anos do nascimento de Sir Francis Cook, mecenas e colecionador de arte – 1817-2017, Parques de Sintra, Montes da Lua e Caleidoscópio, 2017), informam-nos que o Salvator Mundi foi vendido por uma insignificância em 1958, quando os negócios da família entraram em declínio e a colecção Cook foi dispersa em vendas sucessivas. Trata-se de uma obra-prima: «podemos alvitrar que foi a excepcionalidade alcançada por Leonardo na representação ou no ‘retrato ideal’ do Salvador que o impulsionou para procurar o ‘retrato ideal’ da mona Lisa», escreveu a propósito Fernando António Baptista Pereira.
Mais importante, por ter estado efectivamente no mercado português e ter sido certamente admirado por artistas e amadores de arte, é o caso do citado desenho de Leonardo que pertenceu a Francisco de Holanda. Representa o «Busto de homem grotesco visto de perfil» e encontra-se na Oxford Christ Church Picture Gallery. Sabemos que no século XVI esteve em Portugal, integrando a colecção de Francisco de Holanda, cabendo a Sylvie Deswarte o mérito de o ter revelado, ao mesmo tempo que reconstituía a colecção de desenhos que o pintor e teórico das artes possuía, todos eles devidos a grandes mestres. Nesse acervo se incluía esse grande e notabilíssimo desenho a carvão representando um vigoroso perfil de homem grotesco. O desenho de Oxford tem a inscrição «LIONARDO DA VINCI» em caracteres epigráficos, inscrição essa aposta pelas próprias mãos de Francisco de Holanda, tal como sucede em todos os outros desenhos da sua preciosa colecção, onde se incluíam, entre outros, desenhos dos italianos Polidoro da Caravagio e Miguel Ângelo Buonarroti e, caso isolado, do português Campelo. Sobre este conjunto de desenhos, espécie de pinacoteca em papel avant la lettre, importa ler-se o ensaio de Sylvie Deswarte-Rosa “Tudo o que se faz em este mundo é desenhar“: Francisco de Holanda entre théorie et collection» (saído no congresso El Modelo italiano en las Artes Plásticas de la Península ibérica durante el Renacimiento, dirigido por María José Redondo Cantera, Universidade de Valladolid, 2004, pp. 247-290).
Talvez a posse deste grande desenho por parte do artista português se explique pelo facto de Francisco de Holanda ter tido oportunidade de conhecer em Roma um discípulo de Leonardo, Tomaso di Giovanni Masini da Peretola (1488-1546), chamado Zoroastro, que era aliás um excelente desenhador, pois colaborara directamente com o seu mestre, e que, dadas as relações de ambos com o Cardeal D. Miguel da Silva, estante em Roma, pode ter intermediarizado a sua compra, o que explicaria (como defende Deswarte) a sua vinda para Portugal. O desenho estava, no século XVIII, na posse do General John Guise (1682-1765), entrando mais tarde nos fundos da Christ Church, em Oxford.
A única obra de Leonardo da Vinci que existe em Portugal é, assim, o belíssimo desenho Rapariga lavando os pés a uma criança, que datará ainda da fase florentina do artista, cerca de 1480 (ainda que um outro estudioso, Leonardo Carlo Pedretti, o considere já da fase milanesa, c. 1483). O excepcional trabalho, desenho à pena e tinta castanha, com aguada castanha sobre pedra negra, mede 185 x 114 mm e encontra-se nos acervos da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Esta preciosidade deu entrada nesta instituição em data incerta do século XIX, por mão de um dos bolseiros que frequentavam então as academias italianas, e foi taxativamente identificada como de Leonardo da Vinci pelo curador e historiador de arte inglês Philip Pouncey, em 1965, com confirmação científica dada à estampa, em 1977, na prestigiada revista ‘Apollo’, onde Pouncey assinalou as flagrantes afinidades de desenho e estilo com outros trabalhos gráficos de Leonardo, estudos para uma composição da Virgem e o Menino com o Gato que existe no British Museum. O desenho foi mostrado na exposição Cinco Séculos de Desenho na Colecção da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (2012), e vai integrar, em Outubro próximo, a grande exposição de desenhos de Leonardo no Museu do Louvre.
N: A Academia das Ciências de Lisboa entendeu levar a cabo no dia 4 de Junho uma sessão dedicada a assinalar condignamente o quinto centenário da morte de Leonardo (1519-2019), sob o título O GÉNIO DE LEONARDO DA VINCI NOS 500 ANOS DA SUA MORTE, reunindo especialistas de História da Arte e das Ciências como Henrique Leitão, Sylvie Deswarte-Rosa, Paulo Pereira, Vasco Nuno Medeiros, e outros.
(este texto é inédito; não chegou a sair na revista a que estava em princípio destinado).