Liberdade de expressão à medida do gosto de cada um
Uma notícia do JN, com o título “Detidos por ofender na Net menino com cancro que quer ser toureiro”, dá conta que em Espanha, duas pessoas foram detidas pela Guardia Civil por, supostamente, ofenderem, através das redes sociais uma criança que sofria de cancro e queria ser toureira.
Ora, não ignorando a situação da criança e das infelizes manifestações contra a mesma, um verdadeiro defensor da liberdade não se pode rever na detenção das pessoas em causa. E não se pode rever neste acontecimento da mesma forma que tem, por outro lado, a equivalente liberdade em se opor moralmente aos factos que a originaram. Mas é aí que acaba – ou devia acabar – essa “censura” moral. Não se defende “meia dose” da Liberdade de Expressão da como se de algo saído de um pronto-a-comer se tratasse e estivesse ali à disposição do nosso gosto. Ou se defende, ou não se defende. A Liberdade de Expressão não é subjugável ao nosso gosto pessoal.
Entristece-me que hoje só seja aceite o convencional pensamento puritano; a opinião que outrora já aceitávamos. Se for contra, repudiamos, tentamos censurar, e se a mesma estiver no Facebook há uma pronta e prestável militância fascizóide, intolerante para com a ideia contrária que, juntamente com todas as ferramentas de censura à disposição nesta rede social, tentam apagar a mesma, eliminando-a para que não seja mais visível. Parece uma forma de pensamento que tem o infeliz condão de nos dar maus hábitos no nosso dia a dia.
Mas trata-se de puritanismo ou realmente hipocrisia? Um pouco dos dois. Ricardo Araújo Pereira diz esta semana à revista Visão que o puritanismo está agora do lado da esquerda. Aquela que foi – e é! – vertente de pensamento político e social aliada de tantas vitórias recentes, é hoje aquela que censura a opinião contrária como se tivesse medo de uma regressão. Esquecem-se esses grupos que só se alcançou tudo o que hoje somos devido ao poder da Liberdade de Expressão. A Liberdade de Expressão não é só uma “expressão” (os puritanos que me desculpem a repetição). É uma conquista que infelizmente se tornou nos dias de hoje numa arma usada por aqueles que conquistaram vitórias devido à mesma (a tal hipocrisia). E falso argumento utilizado para tentar calar a opinião contrária.
Uma frase erradamente apontada a Voltaire resume tudo isto: “Posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até a morte o direito de o dizeres.” Foi a sua biógrafa que o disse, mas a mensagem mantém-se.
A Liberdade de Expressão é, não só essa expressão bonita de se usar quando nos dá jeito e muito menos uma a usar-se para defender a censura de uma ideia que é repudiável para nós. Não. A Liberdade de Expressão origina troca de ideias, argumentos, avanços e/ou recuos necessários. Chegámos até esta sociedade, que considero evoluída (mas já tive mais certezas), empoleirados nas suas costas, como se fosse um verdadeiro Cavalo de Guerra (e nunca Cavalo de Tróia), parceiro de tantas vitórias.
É abominável que muitos dos que meteram “Charlie” nas suas fotos de capa e de perfil, ou tenham feito uso do hashtag #jesuischarlie, sejam hoje aqueles mais facilmente se ofendem e tentam eliminar ideias que, para eles, são abjectas. Daniel Oliveira referiu este ano numa crónica sua em relação ao aniversário dos acontecimentos no Charlie Hebdo, que “a defesa da liberdade de expressão não implica concordância com o que é expresso”. É tão simples quanto isto. Repudiar quem ataca e tenta censurar selvaticamente o Rui Sinel de Cordes (já agora, em muito melhor qualidade podem assistir a um Anthony Jeselnik com o seu “Thoughts and Prayers”, por exemplo), não significa em momento algum que se defenda as suas ideias, ou sequer que as mesmas são realmente ideias e não apenas material humorístico como, de facto, são (de bom gosto ou não é outra conversa). Quem quer rir, ri, quem não quer rir pode ignorar.
Até lá, ansiemos pelo dia em que se consiga simplesmente ignorar uma ideia que nos ofende, ou, num mundo bem mais idealista, que a mesma possa ser discutida de parte a parte, sem que a exigência de censura se sobreponha a alguma destas duas alternativas anteriores.
O jornalismo português, com peças do género da supra citada, torna-se num simples instrumento de fabrico de opinião, como se de uma claque se tratasse. Aqueles que deviam defender a liberdade de expressão e que vivem da mesma, conduzem-nos, em vez disso, habilmente (para os mais susceptíveis) para uma opinião pré-formatada que reprova os actos que na notícia são assinalados e levaram à detenção de duas pessoas que simplesmente foram infelizes nas redes sociais. Se por um lado sou também um fanático anti-tourada – seja lá isso o que for pois fanático só sou pelo Benfica -, em momento algum concordo com o que foi dito pelos “fanáticos” em causa. Mas, acima de tudo, sou avidamente contra a detenção de duas pessoas que em momento algum incitaram à violência, algo que os fanáticos pró-tourada não poderão alegar (ainda que desvalorizem a existência do animal na terra não fosse a existência de touradas, mas não entremos por aí porque a criança tem um sonho, tão legítimo como o de Martin Luther King ou qualquer outro!).
As pessoas detidas nunca o deveriam ter sido, pelas razões apresentadas, numa sociedade que se considera livre, pois, que se saiba, não estamos em “1984” (o livro, não o ano em específico). Não me revejo no que disseram e só desejo que a criança se cure do cancro e viva o suficiente para mudar de opinião em relação às touradas (um mal nunca vem só). Ainda assim, “severos e inusitados ataques nas redes sociais” é justificação para a detenção dos infelizes comentaristas? A ideia de se esperar a morte de alguém pode chocar, sobretudo se for de uma criança com cancro, sujeita a maior compaixão ainda pela sua tenra idade, mas o desejo (ainda que da morte de alguém) é algo pessoal e intransmissível, e o facto de eu esperar ou querer que algo aconteça não quer dizer que 1) vá fazer algo para que aconteça, de facto; 2) que de alguma forma vá afectar a vida do visado, sobretudo quando feitas através de redes sociais. Além disso, todos vamos morrer. É uma inevitabilidade, não há nada a fazer. Desejar que isso aconteça mais rápido do que o previsível em alguém é quanto muito um comentários parvo, digno dos maiores e mais trabalhados insultos que nos lembremos, mas demonstram mais do que a estupidez das suas palavras? Dificilmente. E dificilmente são mais que meros comentários infelizes, feitos através de redes sociais e que estão longe de evidenciar algo mais do que esse triste “desejo”.
Há pouco mais de um mês, Ana Nicolau foi condenada a 6 meses de pena efectiva que foi substituída por uma multa de 1440 euros por ter interrompido Passos Coelho ao pedir, nas galerias da Assembleia da República, que este se demitisse. Soubesse Ana do que se adivinhava ao Governo de Passos Coelho e não necessitava de agora pagar uma multa absurda por alguém se ter esquecido do quão fácil seria indicar simplesmente a porta de saída da AR à Ana. Que se prenda também aquele senhor de idade que esta semana andou aí pelas redes sociais a mostrar o rabo ao marcador do pénalti que o viria a falhar. Que o façam por atentado ao pudor. Ou então o árbitro que mande repetir o encontro. Já agora, e aproveitando que falamos de árbitros. Que tal prender todos os animais (nos quais me incluo) que no calor do momento de um jogo de futebol chamam uma panóplia de diferentes e pouco originais insultos ao senhor que habitualmente veste de amarelo? Ou só podemos ser detidos se o escrevermos nas redes sociais? Não tem o mesmo charme para esta nossa nova “polícia do pensamento”. É nestas redes sociais de logo azul que nos lembramos da censura do “lápis”. Em referência a uma feliz crónica que aqui colocámos a semana passada, da autoria de José Malta que dizia estarmos “cada vez mais Huxley”, afinal, cada vez estamos também mais Orwell.