Outro desígnio de Abril: apologia à liberdade do livro

por José Moreira,    23 Abril, 2023
Outro desígnio de Abril: apologia à liberdade do livro
Fotografia de Portuguese Gravity / Unsplash
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Inspirado pela proximidade temporal entre o Dia Mundial do Livro e o nosso Dia da Liberdade, 23 e 25 de Abril respectivamente, decidi reflectir sobre: alguns fenómenos que podem pôr em causa o livre-arbítrio de produzir e usufruir dos livros; o seu valor imaterial e respectivo papel cultural. Hoje, e sempre, é da máxima importância recordar que a liberdade de expressão, criativa e editorial são desígnios de Abril e Direitos Humanos fundamentais.

O livro. Um simples objecto inanimado, mas cheio de vida(s). Mas como é que este objecto se tornou algo indispensável para tanta gente? Não foi um processo rápido. Note-se que o primeiro passo rumo à transformação do livro em produto de consumo de massas ocorre a 30 de setembro de 1452, quando o alemão Johannes Gutenberg deu início à produção do primeiro livro impresso: uma bíblia em Latim, da qual foram impressas 180 cópias até 1455 (para vermos o quão rudimentar ainda era). O livro assume-se gradualmente como substituto (ou complemento) da tradição oral, e transforma-se num meio de registo e transmissão de conhecimento por excelência, campo de mediação intelectual onde se facilita a coexistência entre diferentes ideias e ideais. O livro pode valer tudo para uns e para outros pode não valer nada, e é curioso como um amontoado de papel, simples suporte físico feito de materiais fibrosos de origem vegetal, ao longo dos séculos despertou sentimentos dicotómicos na humanidade, fosse pelo conteúdo, autor ou ambos.

  • Os livros assumem uma complexidade que vai muito além do seu valor enquanto objectos de consumo e, tal como as pessoas, quase nunca são unidimensionais. Verifica-se que há quem venere os livros intensamente, mas também há quem os tema.

Mas quem os teme? Os tiranos, os ditadores, os déspotas e outros intervenientes que ambicionam a ignorância dos seus seus pares, seguidores e povos, para melhor os explorar e controlar. Os livros foram alvo do fogo nas fogueiras, que estão documentadas desde o século XIII, mas existem evidências com muito mais tempo. Uma forma contemporânea desta prática será o apagar de livros digitais em bibliotecas e acervos online, ou a sua ocultação nos sites de distribuição e nos próprios motores de busca. Outro método é a censura, que rasura, reescreve e proíbe livros como forma de controlo. Nesta vertente, é importante recordar os efeitos nefastos e danos imateriais à nossa cultura e identidade colectiva, perpetrados pelos 48 anos de censura de Salazar e do Estado Novo. Nomeadamente, a forma como estes longos anos atrasaram a nossa produção literária, ao impedirem a publicação de obras de autores como Miguel Torga, Natália Correia, Herberto Helder ou Vergílio Ferreira, entre muitos outros.

  • As queimas de livros e as censuras são manifestações históricas de acções repressivas por parte de regimes totalitários, de reinados e religiões. São alguns dos métodos de controle cultural e ideológico e hoje assumem uma dimensão mais complexa, onde o “queimar” ou “censurar” pode ser um ataque reputacional nas redes sociais, entre outros métodos. 

Dando outro exemplo contemporâneo: todos os anos são banidos incontáveis livros nas escolas e bibliotecas dos Estados Unidos da América, seja por razões de “saneamento” linguístico, seja por causa de guerras ideológicas e sectárias. As vítimas desses conflitos incluem livros de História, Filosofia, Literatura, Poesia, Política, LGBTQIA +, entre uma diversidade quase infinita de alvos a abater. Ou seja, numa era de polarização, cada vez mais se nota a intolerância à diferença (dentro de uma noção de senso comum e respeito mútuo). Assim podemos perceber que os livros possuem um duplo simbolismo, o da liberdade e o da sua perda.

  • Porque será que certos livros geram estas controvérsias e reacções? Porque são um meio democratizador do que gostamos e do que os outros gostam, e muita gente não consegue lidar com essa noção ambivalente.

Recentemente, surgiu outro fenómeno com a publicação de versões “saneadas” de livros clássicos da autoria de Roald Dahl, Enid Blyton, entre outros autores. Estas intervenções surgem a par da introdução de uma nova variável no mercado literário: o “leitor de sensibilidade”, uma espécie de censor “benemérito”, que analisa e ajusta a linguagem das obras para as vender num determinado contexto de mercado editorial ao sabor dos interesses da editora. Apesar de não serem censores na definição pidesca, é de relembrar que estas não são meras adaptações, que sempre existiram na verdade. Por agora, apenas existem num número restrito de mercados, com públicos alvo específicos. 

  • A arte pode ser um acto político, como praticamente tudo na vida, no entanto esse acto tem de ser definido pelo artista, nos seus próprios termos, e não por “manuais de instruções”. Faz pouco ou nenhum sentido que a arte (aqui na forma escrita) siga princípios normativos. Pois isto é extremamente difícil de conciliar com a subjectividade da arte, roçando quase a dissonância cognitiva. Como é que a arte pode ser um meio verdadeiramente disruptivo, se tem de seguir determinadas regras conceptuais?

A normalização de qualquer acto que abra a porta ao condicionamento da arte, estabelece um precedente potencialmente contaminante e pernicioso à luz do pluralismo, da diversidade cultural e originalidade da obra. É importante não se abdicar da crítica sobre estes fenómenos, pois toda a repressão começou por pequenos passos que se normalizaram. No entanto, se alguma obra literária tiver que passar por este crivo “da sensibilidade”, que seja com total consentimento e conhecimento do autor. A meu ver, esta actividade é perfeitamente legítima como acto de consultoria a quem esteja a escrever no presente, quer por iniciativa própria, quer por sugestão editorial. 

  • Será que faz sentido modificar a arte escrita (muito depois da morte do autor) por causa do uso de termos ou conteúdos de época, em vez de dotar as pessoas com a capacidade e curiosidade crítica para os interpretar? Felizmente, a arte é subjectiva e a literatura também, em 100 leitores a mesma história pode ter 100 interpretações distintas. Qual é o interesse para que isto não seja assim e quem sou eu, ou quem quer que seja, para refazer a obra de alguém que a idealizou de determinada maneira? 

Mais, diria que existe um potencial paradigma na pouco saudável obsessão, política e ideológica, do controlo da língua e do discurso alheio: poderemos vir a assistir ao modificar ou afastar da obra de pessoas que foram parte importante, ou até fundamental, do nosso progresso moral e ético colectivo, por não se adequarem às normativas discursivas impostas no presente. Defendo que não são os livros que devem ser alterados, mas sim as mentalidades e, mais do que tudo, deve-se fomentar a capacidade crítica e a contextualização histórica dos autores e das suas obras. 

  • Estaremos condenados ao acantonamento em grupos estereotipados e ao consumo de produção cultural ou literária feita à medida das nossas crenças, e como simples meio de reafirmação dos nossos pontos de vista? Pessoalmente, não gostaria de assistir à transformação da arte numa massa amorfa e homogeneizada.

Após este divagar através de múltiplas temáticas que marcam a história e a atualidade dos livros: quero aqui enaltecer todos os tipos de livros, incluindo os em formato digital (que há mais de uma década foram anunciados como substitutos para o livro físico, previsão errada até ao momento). E claro, não esquecer a necessidade de o livro ser acessível ao máximo de pessoas. Através das bibliotecas municipais e comunitárias, ou outras iniciativas individuais e colectivas, por exemplo, uma página de divulgação ou um grupo de leitura (agora até temos a possiblidade de não serem presenciais). 

  • A prática do exercício crítico é importante, mas nunca devemos esquecer que os livros são, ou deveriam ser, de todos e para todos. Algumas posturas de elitismo intelectual, ou de um certo classismo sobre os mais diversos conteúdos e autores, só afastam leitores e prejudicam o papel fundamental dos livros na vida colectiva.

Resumindo, considero importante que as pessoas leiam o que gostam, e o que não gostam. Que experimentem a diversidade infindável que o mundo literário tem para oferecer. Que vivam o livro como se tratasse de uma experiência gastronómica de inúmeros sabores e sensações, fundamentalmente suas. Que abracem a partilha de sugestões com os amigos, com a família, e até com desconhecidos nas redes sociais. Na verdade, não interessa o que leram ou querem ler, desde que leiam. Para concluir esta tentativa de apologia do livro, deixo esta simples reflexão:

  • Ler um “mau” livro pode vir a ser o caminho para um “bom”, mas não ler é o caminho para nenhum livro.

Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais,
tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.

“Ofício de Paciência”, de Eugénio de Andrade
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