Lima, capital do Peru: a busca de paz no caos sul-americano
À minha direita, vejo a cidade que se estende até ao sopé das serras que a rodeiam. Nesta planície onde convergem três vales, está concentrada uma população que, em número, quase equivale à de Portugal inteiro. Falo de Lima, no Peru. Vista de um décimo oitavo andar, a cidade quase parece estática; no entanto, pelas suas milhares de estradas, ruas e avenidas, a vida é vibrante, caótica e ruidosa. O caos parece ser ampliado pelo Verão húmido e quente, mas nunca sufocante, de Fevereiro. Aqui, bairros precários convivem com casas luxuosas, edifícios modernos convivem com restos de arquitectura indígena e colonial, e trabalhadores de escritório convivem com vendedores ambulantes, mais tudo o que há pelo meio.
Nem sempre é fácil encontrar paz nesta cidade. O ruído é quase constante: vem de trabalhos de construção, do trânsito confuso que sobrelota as estradas, dos táxis que buzinam para aliciar possíveis clientes, de outros carros que buzinam como forma de aviso, dos colectores que se dependuram das portas dos colectivos para chamar pessoas para as suas rotas incompreensíveis, entre muitas outras fontes de poluição sonora. As coisas ficam mais organizadas quanto mais para sul se vai, mas até no malecón elevado que dá vista para o Oceano Pacífico ouvimos os carros do Circuito de Playas, a marginal construída para facilitar o acesso costeiro. Isto para não falar dos magotes de pessoas que procuram as vistas vastas sobre a água e a linha costeira.
Na visita ao centro da cidade, zona que nem é a mais popular da mesma, denota-se uma sensibilidade hispânica em termos de planeamento urbano e arquitectura. Largas praças, rotundas e parques são ladeados de alguns edifícios coloniais, nomeadamente na fabulosa Plaza de Armas. Dela sai o Jirón de la Unión, a pedonal “rua das lojas” que lembra cidades espanholas como Badajoz e une a praça anterior à Plaza San Martín, cujas arcadas impressionam. Muita gente faz compras, muitos carros passam e, pelo meio disto, ainda há um desfile alusivo ao Dia da Amizade, com fatos e danças tradicionais amiúde, trazendo um pouco das culturas andinas para a metrópole.
Passa-se a ponte sobre o rio Rímac e entramos no distrito homónimo, com paredes pintadas de um ocre caloroso. À medida que avançamos, a densidade populacional reduz-se, mas a paz não vem. Sob a torrina do sol, as ruas quase desertas e algo sujas transmitem uma sensação de insegurança — algo corroborado por peruanos e pelas estatísticas. O desconforto acaba por se revelar necessário. Mais do que os edifícios majestosos da Plaza de Armas, valeu a pena ser confrontado com o cenário que, apenas a 10 minutos de distância, se pinta de cores quentes. A bolha em que o distrito empresarial me encerra não me tinha preparado para isso.
Também não me tinha preparado para a pura confusão que assola o Bairro Chinês de Lima num Sábado (e provavelmente também nos restantes dias da semana). Comerciantes e transeuntes fundem-se num mar de gente, gritam-se nomes de mercadoria e preços, e todas as técnicas são válidas para chamar clientela. Vendem-se gelados, cortinas de banho, pentes para piolhos, filtros de água e até pósteres “5D” e “6D”. Mal sabia eu que descobriria novas dimensões no Peru. Até tive de parar um pouquinho no pequeno Parque Universitario, com vista para o centro cultural Casona San Marcos, para poder recuperar de todos os estímulos.
Foi uma refeição por 2 euros no Mercado Central que me deu a energia necessária para encetar esta jornada sem vacilar. No mercado, frutas, vegetais, carne, roupa e bugigangas distribuem-se por corredores mais tranquilos que no exterior (fora o corredor de restauração). A mercadoria perecível tem um aspecto e odor maravilhosos — sejam as ervas aromáticas, o rol de frutas tropicais, os frangos do campo ou as flores. As coisas boas trouxeram-me tranquilidade. Planta-se uma ideia que só florescerá no final do dia.
Rumo a sul de novo, para assistir ao pôr-do-sol numa qualquer praia do moderno distrito de Miraflores. Quando consigo ver o pôr-do-sol, sinto que o dia fica verdadeiramente completo. Se não o vejo, outras coisas poderão contribuir para isso ou então posso simplesmente assumi-lo, mas o rico desfile de cores esbatidas põe sempre um laço bonito no embrulho que foi o nosso dia. De uma forma poética, difícil de conjurar, o pôr-do-sol fecha o que quer que tenhamos aberto e experienciado ao longo do dia. Para mim, fez com que tudo aquilo que havia visto pela primeira vez nesse dia — uma cidade nova, bastante diferente daquelas a que a minha auto-imposta clausura europeia me confine — fizesse todo o sentido. Mesmo com os carros a passar por trás, as crianças a atirar seixos para a água do oceano e os surfistas na sua actividade, senti-me em paz.
Erroneamente, havia pensado que só poderia encontrar paz no silêncio. Numa cidade assim, aprendi a encontrá-la noutras coisas. Na brisa morna da noite, na jalea de peixe com leite de tigre que como numa modestamente idílica esplanada numa buliçosa avenida principal (já para não falar do cebiche, da causa, do chicharrón, do pisco sour, do camote, da cancha…), em descontraídas conversas com locais e nos seus sorrisos amáveis e genuínos, ou até apenas no tempo para mim. A paz, também somos nós próprios que a fazemos.