“Listen”, de Ana Rocha de Sousa: o cinema activista e a cruel realidade
Ana Rocha de Sousa saltou para as bocas do Mundo com o mesmo impacto que o seu “Listen”, a sua primeira longa metragem, arrebatou quatro prémios no Festival de Veneza. Condensado em 73 minutos, o cinema da realizadora portuguesa tem a frieza do combate social e activista de Ken Loach envolvida num murro impactante próprio de Hirokazu Koreeda. Adiante com as comparações próprias de quem tenta encontrar sempre paralelismos com o que já foi feito, o realismo de Ana Rocha de Sousa, desprovido de artifícios, subtilezas ou atalhos, é só seu.
A ideia surgiu de uma notícia de 2016, quando o caso de uma adopção forçada se tornou público. Uma criança, na altura com poucos dias, foi retirada à sua mãe pelos serviços de Segurança Social britânicos devido aos seus parcos rendimentos. Este tipo de situações acontece sobretudo a famílias de classes baixas, estrangeiras e com pouca possibilidade de deambularem convenientemente num sistema com procedimentos abusivos e burocratizados, feito para não “ouvir” as famílias. Em “Listen” essa família é portuguesa, com Bela (Lúcia Moniz) e Joca (Ruben Garcia) a serem os pais de três crianças que lhes são retiradas pelos serviços sociais.
Mas, o que é que Ana Rocha de Sousa quer que oiçamos, afinal? Talvez não haja só uma resposta certa. Lu é surda e a filha do meio do casal. Certo dia, na escola, são-lhe detectadas algumas nódoas negras nas costas, que geram a dúvida sobre possíveis maus tratos por parte dos pais. Reside neste ponto o primeiro no embate comunicacional. Esta questão desencadeada por falta de comunicação com a escola e serviços hospitalares leva os serviços sociais a agir junto de uma família que estava já sinalizada por Joca estar sem emprego (num trabalho que era de horário reduzido e precário) e Bela trabalhar como mulher-a-dias. Os três filhos do casal são então retirados ao casal e levados para uma instituição a cargo da Segurança Social que os tratará de dar para adopção a uma outra família a troco de dinheiro (o Estado paga uma quantia para que uma família adopte cada uma destas crianças nestas situações).
A visita às crianças é dificultada e a comunicação barrada. Bela não pode usar língua gestual, nem falar em português na visita aos filhos. Tudo tem de ser perceptível para os agentes de serviços sociais. Segundo ponto de embate. Uma mãe e pai são impedidos de comunicar numa língua desconhecida para quem vê de fora, sob pena de estarem a dizer algo, uns aos outros, que não deviam e terceiro ponto de embate: Essa mesma barreira linguística se é falta de ponte entre a instituição pública e a família, é também sinal de um Estado Leviatã, que se sobrepõe aos mais fracos, que os menoriza e que os impede de serem família, não escutando ambas as partes ou tentando perceber onde falhou, mas sim agindo de forma impune e revestido de uma razão autoinstituída. Separa-se assim o Estado Leviatã de um Estado kafkiano pois não é tanto aqui o excesso de burocracia (como falado anteriormente) que aqui Ana Rocha de Sousa pretende mostrar, mas sim a frieza de uma forma de estar britânica que obriga uma família a medidas desesperadas.
Permita-se uma palavra para a arrebatadora prestação de Lúcia Moniz que carrega de forma perfeita este filme na sua cara, personalidade e acção. Lúcia não se torna na personagem mas sim na pessoa, absorvendo e transparecendo depois todas as suas incidências nesta obra quase documentário voyeur. Faz falta arte sob a forma de denúncia activista nos dias que correm, despertando consciências e alertando sobre o nosso redor, que tantas vezes ignoramos ou baixamos a cabeça para não nos incomodarmos.