“Little B” e as vidas que a vida de Mário Moutinho (ainda) não deixou viver
“O que estou aqui a fazer?”. É a dúvida da qual não dá para fugir nos momentos de crise existencial, a pergunta para um milhão de euros – como se de repente estivéssemos rodeados de câmaras num concurso televisivo, perante um Jorge Gabriel imaginado. Foi a questão que passou muitas vezes pela cabeça de Mário Moutinho, clássico velhinho com farto bigode de avô, ou, para quem acompanhou de perto a actividade artística e cultural do Porto num tumultuoso e frenético pós-25 de Abril, homem que não soube fazer outra coisa a não ser passar a vida entre o palco, os microfones e os ecrãs.
É essa vida que o próprio, acompanhado pela companhia Visões Úteis, lembra em Little B, espectáculo que busca o seu nome à música de 1962 dos The Shadows. Esse é o tema com o solo de bateria que um jovem Mário sempre quis aprender a tocar e nunca conseguiu. A peça assinala precisamente aquilo que o actor e produtor fez, mas também as vidas que ficaram por viver: a reencenação de Shakespeare de que não fez parte, por exemplo, as ideias que ficaram esquecidas na gaveta e os sonhos que, pelo menos para já, ainda não viram a luz do dia. Mário Moutinho conta ao Teatro Municipal do Porto que não quis recordar apenas os seus “sucessos”, passando também pelos “anseios” e pelas “angústias” que encontrou no caminho – sentimentos que são “comuns a todos nós”.
Não que Little B seja uma retrospectiva tradicional. Ana Vitorino, actriz que também assina a direcção da peça, revela que as Visões Úteis – que não há muito tempo fizeram outro tipo de reflexões sobre o peso que a memória e o passado exercem nas decisões do presente – não quiseram fazer um “espectáculo documental” ou um “balanço de vida”. As histórias da vida pessoal e profissional de Mário Moutinho servem como “uma desculpa para se falar de outras coisas”, como, por exemplo, “a ideia de que a nossa vida não se completa no nosso percurso de vida”.
É através da metafórica desmontagem do cenário, com a bateria, o retroprojector ou a marioneta bigoduda lá ao fundo, que a equipa começa por explorar esse conceito. O artista fala sobre alguns dos seus desencontros e falhanços antigos, antes de, sem darmos por isso, passarmos para um mundo completamente diferente, onde os actores que o acompanham em palco se colocam na sua pele ou supõem o que diria sobre a sua vida em entrevistas inventadas – que, ainda assim, correm desconfortavelmente mal.
A mudança é brusca e, talvez, até triste, porque os momentos mais gratificantes de Little B são também os mais sinceros, quando a peça pendura o fato do absurdo e da fantasia e Mário Moutinho surge apenas como o velho Mário, a desenterrar o baú. Pode ser o Marcial d’Os Andrades, ou o Guarda Serôdio d’Os Amigos do Gaspar – duas séries da RTP, exibidas entre os anos 80 e 90, onde o actor representou talvez os seus dois papéis mais importantes na televisão –, assim como pode ser a inconfundível voz dos anúncios a meio dos relatos da bola. Seja ainda, talvez, o Mário que lembra com brilho nos olhos a alegria que sentiu quando ouviu na rádio a notícia da revolução. Como se diz ao longo do espectáculo, “há coisas que não se podem ficcionar”, e, da mesma forma, o melhor Mário é o que só o próprio consegue ser, o que ainda não consegue tocar o raio do solo da música dos The Shadows.
No início, Mário Moutinho diz-nos que o segredo para um bom final no teatro é “acabar com uma frase com sentido”. No fim, com as baquetas na mão, o artista não diz nada. Pensa apenas no Mário que já quis ser uma estrela de rock e que teve idade para poder sonhar todos os sonhos do mundo. A menina Clara interrompe a contemplação silenciosa, pousa no chão a mochila que carrega às costas e começa a tocar bateria. É o solo de “Little B”, que o actor acompanha euforicamente batendo nos seus pratos imaginários. Se calhar, a idade para querer ser estrela de rock já passou, mas isso não quer dizer que não possa sonhar novos sonhos.
Little B foi exibido no Pequeno Auditório do Teatro Rivoli entre os dias 15 e 19 de Janeiro, e chega, a 24, ao Teatro Académico de Gil Vicente.