‘Lo-fi Moda’, dos Ermo, prima pela sua estranheza progressiva e ambiciosa
Há música que é difícil de explicar. Não tem necessariamente a ver com a sua complexidade, tem mais a ver com o facto de sabermos que as nossas palavras nunca lhe iriam fazer justiça. Todos os ávidos ouvintes certamente já experienciaram esse aperto: aqueles artistas que quando nos perguntam o que é não conseguimos responder nada a não ser “Vai ouvir”, mas não como uma ordem (apesar de que quando o fascínio é muito, é isso mesmo que parece). É sim como um testemunho do nosso espanto e da “estranheza” musical que eles representam. Ermo é uma dessas bandas que faz música indescritível.
Este duo bracarense composto por António Costa e Bernardo Barbosa desafia as minhas noções musicais. O seu primeiro longa-duração Vem por Aqui chegou pela mão da NOS Discos e combina batidas electrónicas com uma voz resoluta e com toques de algo “tribal”. Parece haver um tipo força mística que adorna alguns dos temas deste álbum, como um vislumbre de um plano astral. As batidas são atmosféricas e modernas mas há qualquer coisa de tradicional, apoiado na música portuguesa: o início de “Fronteira” é distintivamente tuga, mas depois a música transforma-se em algo que excede os limites ordinários, algo “sagrado” que aspira a transcender a nossa compreensão. Vem por Aqui é um projecto que foi aclamado pela crítica mas com Lo-fi Moda, o álbum lançado este ano, os Ermo provam que o melhor ainda estava definitivamente para vir. Constroem por cima da sua discografia para criar algo consideravelmente mais evoluído e distante.
No entanto, este novo projecto não está completamente irreconhecível face ao seu predecessor e o tradicional continua a ser uma inspiração. Surge pela mão de temas como “Frito Futuro”, uma viagem sonora energética composta por uma batida marchada e uma melodia familiar. Mas a verdade é que Lo-fi Moda esforça-se para sobressair e soar independente do que veio antes. O álbum fala da sociedade moderna e do comportamento humano engolfado pelo mundo digital e isto é mais do que um conceito para guiar o ouvinte. Refere-se também à experiência musical de Ermo e como esta se alterou em Lo-fi Moda. O maior destaque vai para a produção electrónica arrebatadora que vemos no álbum, que denota uma maturação e uma mestria em jogar com sons e harmonias. Há uma atenção detalhada a todos os aspectos da construção, e as músicas soam “cheias”, completas, com pormenores que só depois de nos perdermos várias vezes no álbum é que reconhecemos. Esses pormenores também se fazem sentir a nível da voz, maquilhada por efeitos adequados que contribuem ainda mais para uma tela digital explícita: no último verso de “Ctrl + C ctrl + V” a melodia é intermitente e cortada fielmente para espelhar a letra que é cantada, e um sentimento específico.
Ao longo do álbum são abordados temas como vaidade, narcisismo e descrença na sociedade actual. “Circle J”, um caos organizado de impulsos sonoros, funciona como um manifesto de isolamento (“Preferes companhia/ Prefiro a minha”) e o mesmo se pode dizer de “Raicevic.als”. Fala da enormidade da existência colectiva mas que individualmente por vezes carece de valor (“Tão poucas palavras/ Tanta gente para as dizer”). Essa música tem qualquer coisa de psicadélico nas suas entranhas, e os sopros acrescentam mistério, aliados a um suave tilintar que se faz ouvir durante toda a música. A atmosfera geral do álbum é electrónica e Ermo envergam as suas influências com orgulho e precisão: ouvimos referências ao footwork em “Contra” que fecha o álbum com pujança, ou na já referida “Circle J” apesar de transparecer algo genuinamente novo, fruto do engenho do duo e do expandir dos seus talentos musicais.
Mas o mais surpreendente no meio da mescla de sons e da abordagem metódica de Ermo é que se ouvem melodias cativantes e uma preocupação com uma estética pop, apetecível e apelativa a um público mais geral. Os Ermo abraçam generalidades musicais cobrindo-as com a sua abordagem particular.“Vem nadar ao mar que enterra” caminha por dois mundos que se crêem insolúveis mas que soam perfeitamente dissolvidos um no outro, munida de uma percussão discretamente dançável e teclados “autoritários”. “Púrpura pálido”, sensual e aprazível apesar de algum “desconforto” auditivo em certos momentos, e “Fa zer vu du” mostram essa sensibilidade para a abrasão e a familiaridade com o conhecido. O tema tem qualquer coisa de inocente e leviano que se camufla muito bem no meio da batida.
Lo-fi Moda começa com um pedido. Uma poderosa batida incita ao escape, à libertação de tudo, com alguma coisa de inquietante e arriscado inerente à música mas que sabemos ser um pedido seguro. As palavras do tema convidam-nos a absorver a sua estranheza, e Ermo deixam a sua marca definitiva no panorama musical português com um trabalho progressivo e ambicioso. É rápido, de consumo quase instantâneo, e arrebata o ouvinte através de um furacão de batidas irrequietas, melodias cantadas com emoção e uma experimentação musical que mistura as fronteiras dos géneros que emula. O lugar despovoado e solitário que dá nome ao projecto bracarense parece cada vez mais apelativo.
Músicas preferidas: “Vem nada ao mar que enterra”, “ctrl + C ctrl + V”, “Púrpura pálido”, “Frito Futuro”
Músicas menos apelativas: “«»”