‘Loving Vincent’ é uma revolução no mundo da animação
A curiosa história da morte do pintor holandês Vincent Van Gogh (que tipo de pessoa se suicida alvejando-se no estômago, e caminhando para a cidade após o fazer?) é investigada pelo filho do carteiro – numa primeira fase, de maneira relutante – que costumava lidar com a correspondência do pintor, no filme Loving Vincent.
Com certeza, nunca o público, por mais versado que seja na indústria da animação, ou do cinema no geral, viu algo sequer semelhante a Loving Vincent, que está a ser promovido como o primeiro filme inteiramente pintado à mão na história do cinema. É um filme animado, mas isso não é descrição suficiente: para contar a história por detrás da morte do pintor em 1890, os realizadores Dorota Kobiela e Hugh Welchman (que marcaram presença na antestreia do filme, ontem, nos cinemas UCI do El Corte Inglés) reuniram um elenco, encontraram guarda-roupa e cenários apropriados à época, e gravaram o filme. E depois o verdadeiro trabalho começou.
Todos os frames deste filme – mais de 65 000 – foram pintados à mão, com a técnica de óleo sobre tela, no estilo de Van Gogh, por uma equipa de 125 artistas. Conta-nos o realizador Hugh Welchman que o casting e os convites a artistas deixaram a equipa com uma «base de possíveis pintores que contava mais de 50 000 cabeças». Dessas, foram reduzidas para 5 000, depois para 500, e acabaram por ser 125 os génios que acabaram por dar vida aos quadros do pintor, traçando e recriando cada frame do filme numa tela, com ajuda de mesas de luz e televisores potentes.
O resultado desta técnica é uma perfeita mistura de duas formas de arte que têm tido dificuldade em unir-se desde o início do cinema, no final do século XIX. Muitos dos quadros do pintor são trazidos à vida, servindo de cenários para várias cenas do filme, desde A Noite Estrelada até ao Terraço de Café à Noite. O filme pode até ser mesmo belo de mais para o seu próprio bem, e não seria de estranhar alguém afirmar que se perdeu na beleza das telas e que por essa razão falhou algo no fio condutor (simples) do filme.
Este é, na sua génese, um film noir moderno e colorido. A intriga policial mantém-se até aos últimos momentos do filme (ou últimas pinturas) e, bebendo também um pouco da teoria narrativa do cinema clássico, é um filme que nos agarra num enredo que parece escrever-se a ele próprio e saber com precisão cirúrgica para onde se encaminha. O filme manda sobre si mesmo, e não os realizadores.
A vida e morte do artista que é considerado o pai da arte moderna é contada de uma maneira que se veste de um manto de invisibilidade para com o próprio objeto de estudo: Vincent Van Gogh. Existe no filme uma teimosa e admirável recusa quer de glamorizar uma alma em sofrimento, ou de demonizar aqueles que podem ter ajudado a selar o seu destino. Essa recusa de reimaginar a realidade leva a alguns momentos de pesadas recoleções pedagógicas e agarram o espectador num estado de espírito de incerteza face aos possíveis resultados da história, e da moralidade de cada um deles.
Van Gogh viveu uma vida normal de maneira extraordinária, e um dos receios que muitos expressam à entrada da sala onde este filme é projetado, é de que o filme faça exatamente o oposto: por os efeitos visuais brilhantes ao serviço de algo que não o é. Saíndo da sala de cinema, fica no ar a certeza de que este é um filme marcante e notável não só por ser pintado à mão – é um filme marcante e notável apesar disso.