Luca Argel: “O ‘Bandeira’ foi um disco que abriu muitas portas e o ‘Conversa de Fila’ é a escolha de uma delas”
Luca Argel está sentado no café da Casa da Música. Dali a poucos dias, numa sala ao lado, apresentará pela primeira vez o seu novo álbum, Conversa de Fila, ao vivo. Dali a um dia, o terceiro álbum do músico brasileiro a viver no Porto é lançado. Mas, para já, Luca ainda tem tempo para uma conversa de fala entretida à volta da poesia, do samba e das “coisas extraordinárias escondidas ali no meio do ordinário”.
Já disseste várias vezes que uma das coisas que gostas sobre apresentares-te sozinho, apenas com voz e guitarra, é a portabilidade que isso te traz. Mas, deixando-te mais exposto e despido, esse formato será também mais vulnerável? É intencional essa vulnerabilidade que crias?
É totalmente intencional. Agora, com o Conversa de Fila, vai ter mais um elemento que é a percussão, que também é muito portátil, muito miniatura, mas já é mais um elemento de composição dessas músicas. Mas não acho que eu esteja menos exposto por causa disso; acho que continua sendo, assim como o Bandeira, um conceito de arranjo e de produção muito despido, e vão haver concertos em que vou estar sem percussão, como foi toda a digressão do Bandeira. Mas esse formato intimista é proposital para dar mais destaque para as letras e acho que, ao fim e ao cabo, é o que acontece. Sem muitos instrumentos e elementos para tirar a atenção, as pessoas se focam muito na voz. Já se focam naturalmente, mas, quando há poucos instrumentos, focam mais ainda, e é isso que eu quero, é toda a atenção – quase toda, vá – na letra e no que eu estou dizendo, porque são as letras que contam histórias, que dependem de você estar atento, acompanhando o que eu digo para depois entender como a música termina.
A voz ou a guitarra: qual é o teu instrumento? Com qual deles achas mais fácil trabalhar?
É a voz, com certeza. Tanto que tenho projetos em que eu só canto. E eu só me sinto à vontade mesmo para tocar guitarra quando sou eu que estou cantando, não me sinto muito à vontade para acompanhar à guitarra outros cantores. A não ser em situações muito específicas como, por exemplo, o projeto que tenho com a Ana Deus, em que a gente divide as vozes, e tem algumas músicas em que ela canta e eu só toco. Mas isso foram músicas que nós escrevemos juntos. Eu compus aquela parte da guitarra, então eu me sinto à vontade para tocar enquanto ela canta. Mas tocar músicas dos outros para outros cantarem… Eu não me sinto muito instrumentista, eu tenho a minha própria linguagem na guitarra, eu me sinto à vontade nela, mas ela se aplica às minhas coisas. Não é uma relação com o instrumento, é mais com a composição.
Sentes-te mais à vontade no formato banda ou a solo? Ou os dois trazem coisas diferentes e igualmente indispensáveis?
É diferente, é outra forma de escrever e outra forma de cantar também. Eu tenho que usar a voz de formas bastante diferentes para tocar com grupos diferentes. Eu gosto muito dos dois, eles não se anulam um ao outro, depende um pouco do contexto. Por exemplo: em contextos de sala de concerto – como vai ser aqui na Casa da Música –, uma sala fechada, toda desenhada para que as pessoas entrem, se sentem e olhem para o palco e se concentrem no que está acontecendo lá, aí eu acho que, nesse momento, com álbum novo para lançar e com vontade de mostrar as minhas coisas novas que eu tenho, eu prefiro estar sozinho. Mas como vai ser na sexta-feira, no baile de Carnaval do Bamba Social no Ateneu, eu jamais estaria à vontade para tocar sozinho nesse contexto, mais de festa, em que as pessoas não estão sentadas; elas estão em pé, elas circulam, vão ao bar, estão para conversar e para dançar. Aí eu prefiro mil vezes estar com uma banda, ou com o [Orquestra] Bamba Social ou com o Samba Sem Fronteiras, porque a banda, com mais som, impõe uma presença; sozinho, é preciso um outro nível de concentração.
Tens um lirismo muito apurado, muito por causa da poesia. Quando é que ela entrou na tua vida?
Entrou junto com a música. Eu comecei a escrever com 11, 12 anos, e foi na mesma época em que eu comecei a estudar música também.
Pensavas na poesia e na canção como um fim? Ou seja, pensavas na poesia e pensavas na música que a iria acompanhar?
Não, eu fazia as coisas de forma separada, só depois é que eu fui tendo uma consciência de que elas podiam se completar ou se comunicar, mas geralmente, eu quando começo a escrever um texto, percebo logo se ele vai ser um poema ou se ele vai ser uma canção, e eu acabo terminando de escrever já consciente de qual vai ser o fim. Tem é exceções para essa regra, e eu adoro quando elas acontecem e quando as coisas se misturam.
Já houve algum poema que se tenha transformado em canção?
Hmmm… já, sim. Não é uma coisa que eu esteja fazendo muito nesse momento, mas, por exemplo, num trabalho mais antigo meu chamado Livro de Reclamações (uma mistura entre disco e livro), alguns textos dele viraram canções, outros não viraram e eu gravei como spoken word, tocando a guitarra junto. Esse é um trabalho em que as coisas se misturam talvez mais do que nos posteriores.
O mote para os teus poemas é o mesmo que para as tuas músicas?
O mote pode ser o mesmo, mas talvez a diferença, quando eu escrevo um poema, é a falta de preocupação com a sonoridade do ritmo das palavras. Tem poetas que têm muita preocupação com isso, eu já não tenho a coisa de pensar muito em métricas, gosto de pensar mais no sentido do texto do que na musicalidade dele. Mas isso são fases, também já tive fases em que eu escrevia com muita preocupação com o ritmo, por mais que não fossem textos que eu quisesse depois fazer em música. Agora como eu tenho produzido muita canção, quando eu começo a notar que existe uma sementinha de ritmo, ou uma possibilidade de trabalho métrico sobre um texto, eu já separo e trago ele para a canção, e acaba não sobrando nada para os livros dessa parte mais musical dos textos. [risos]
Quando estás a compor, primeiro surge a letra e depois a música ou é ao contrário? Ou depende?
Eu tento sempre fazer com que surjam os dois ao mesmo tempo, porque a música ajuda muito na hora de escrever. Às vezes a gente empanca numa parte da letra, e se ela já tiver uma melodia por trás, ela às vezes por instinto te leva para uma continuação e puxa uma continuação. E se você está escrevendo só a letra, às vezes ela não vem. Mas quando você começa a cantar a letra desde o início e chega numa parte em que não tem mais, naturalmente… a música puxa uma continuação, e ela vem e reboca uma letra que ainda não existia. Às vezes nem é a letra final que vai ficar, mas dá ideias, parece que dá uma fagulha, um clique que desobstrui as ideias.
As letras surgem espontaneamente ou dás muitas voltas com as palavras e fazes vários retoques?
Dou muitos retoques. Às vezes acontece a letra surgir já pronta e não ser preciso dar retoque nenhum. Geralmente, são as melhores [risos]. Mas muitas vezes, quando ela não aparece perfeita, é preciso fazer vários retoques ou cortar partes. Acontece muito, tenho a tendência de às vezes escrever um pouquinho a mais e ficar coisas sobrando, o que às vezes dá uma pena de cortar trechos da letra. A gente fica com ciúme do que faz, não quer tirar, mas é sempre bom [cortar]. Sou muito adepto do “menos é mais”; se tem alguma coisa que parece que está sobrando, eu corto e vejo como fica sem; depois, se o que eu cortei é muito bom, eu tiro e uso para outra música. Isso acontece várias vezes, amputar pedaços de músicas que estão sobrando e virar em um início para uma nova música.
Aconteceu muito isso neste disco?
No Conversa de Fila, acontece eu não usar coisas que estavam previamente escritas, mas elas não foram reutilizadas dentro do disco. Ficaram na gaveta e vão ser utilizadas em outras coisas.
Conseguirias escolher entre a música e a poesia se precisasses de o fazer? Parece que as duas artes se entrecruzam sempre muito no teu trabalho.
Não, acho que é completamente impossível separá-las. A gente consegue separar os suportes, em livro ou em disco, mas conceptualmente é muito difícil de separar ou escolher. Quando eu estou escrevendo uma canção, eu estou fazendo poesia. Talvez, se fosse para escolher assim um suporte, talvez eu escolhesse a música porque ela tem esse elemento a mais, que é o som; não são só as palavras.
Tens muitas referências literárias?
Só autores ou letristas? É que, para mim, os grandes poetas brasileiros do século XX escreveram canções. Entre os que não escreveram canções, eu gosto muito do Manuel Bandeira, talvez seja o meu preferido. Entre os letristas, o meu preferido é o Aldir Blanc. Ele ainda está vivo, é um privilégio incrível ter essa pessoa ainda produzindo. Outro poeta incrível também é o Paulo César Pinheiro; os dois ainda escrevem samba. E tem os mais conhecidos também, o Caetano Veloso, o Chico Buarque, que são poetas sem aspas. E tenho referências portuguesas: dos compositores portugueses, o que eu mais gosto é o Manel Cruz, acho ele um poeta impressionante. Da poesia escrita, gosto muito da Adília Lopes, do José Miguel Silva, que é um pouco menos conhecido, mas também é muito bom, e estão todos vivos ainda e produzindo, o que é muito bom. Acho que Portugal é um país muito bem servido de poetas. Proporcionalmente, até talvez seja um dos países que mais grandes poetas produziu no século XX. Estou falando isso porque eu estudei Letras; estudei um pouco de poesia portuguesa moderna e contemporânea, e a parte do século XX é a que eu mais gosto dentro da literatura. Tem muitos autores muito bons.
As pessoas prestam muita atenção às letras? Costumam perguntar o que elas significam?
Sim. Mesmo quando elas não vêm falar comigo nos concertos, eu olho para a cara delas e vejo, vou vendo as reações. E nesse novo disco tem muitas músicas que pedem e provocam isso, seja por causa de uma parte da música, seja por causa do final da música. Já tem algumas que eu já experimentei tocar em concertos, e já tenho recebido feedback do que funciona, e quais as partes que chamam mais atenção às pessoas. Geralmente, esse ênfase que eu dou na letra funciona. Ela consegue provocar as pessoas. Para mim, o melhor feedback que posso ter são essas reações, que é sinal de que as pessoas estão ouvindo com atenção, que aquilo está despertando algum interesse.
Tens ideia do significado que as pessoas atribuem ao que escreves? Há espaço para mais histórias dentro da que contas?
Sim, claro. Eu não gosto nada de explicar músicas ou poemas. As pessoas às vezes perguntam, mas depois que está escrito e a pessoa ouve, a interpretação é dela. Se ela acha que significa alguma coisa, significa aquilo. Eu próprio encontro nas minhas letras coisas que eu nem sabia que estavam lá. Tenho pessoas que vêm me dizer qual é a interpretação delas para certas coisas que eu escrevi, que eu próprio não tinha pensado, e que fazem todo o sentido! Eu acho que quanto mais interpretações diferentes um texto conseguir gerar, mais rico ele é, e mais difícil é de ele se esgotar. A pessoa ouve uma vez, ouve outra vez, ouve outra vez e está sempre encontrando coisas diferentes, e isso é o que dá valor aos textos.
Já escreves a pensar nas camadas que aquilo pode gerar?
Sim, sempre. Eu só não tenho é controlo sobre todas, não é? Eu coloco algumas assim conscientemente, mas elas depois geram outras sobre as quais eu não tenho o menor controlo, e isso é óptimo. Eu tento ao máximo deixar em aberto no sentido de dar margem a interpretações diferentes. Um exemplo pequeno disso é: eu quase nunca, nas minhas letras, deixo claro o género de quem está falando ou da pessoa a quem se dirige aquele texto, para deixar a imaginação da pessoa dizer se o eu lírico ou o destinatário daquela letra é um homem ou uma mulher. Isso é proposital.
Vamos falar do teu novo disco. Porquê Conversa de Fila?
Por dois motivos: porque é o nome de uma das músicas do disco, e é um conceito que eu acho que tem a ver com a personalidade desse disco, que é leve, informal, como uma conversa de fila. Uma fila é um tempo meio morto que você tenta preencher com uma coisa que à partida não vai ter muita importância na sua vida. Especialmente com desconhecidos, que é geralmente o que acontece numa fila: você está ali numa situação com pessoas que você não conhece, mas que tem uma coisa em comum, que é quererem chegar no mesmo lugar. Só não podem é no mesmo tempo. E estabelecer um diálogo qualquer – mesmo que o conteúdo do diálogo não interesse: pode ser falar sobre o tempo, como sempre, ou sobre futebol, sobre qualquer coisa, não interessa –, abrir-se ao diálogo com uma pessoa desconhecida é um gesto interessante, é político e faz falta, cada vez mais, no mundo. Então, um dos significados do disco, uma das mensagens que ele traz, de uma forma bastante subtil, é de como essas pequenas coisas do quotidiano, esses pequenos gestos que aparentemente não têm nenhuma importância prática, nenhuma grandeza, eles podem, lá no fundo, ter algum valor político, reflexivo. É o valor de coisas aparentemente insignificantes, mas que estão carregadas de significado. A própria canção “Conversa de Fila” nasceu de uma história assim: era uma fila de embarque no aeroporto em que alguém perdeu um documento no chão e a outra pessoa pegou (aconteceu, e eu vi acontecer e escrevi a música naquele momento). Provavelmente, as duas pessoas que participaram desse acontecimento nem se lembram mais disso, não teve grande valor na vida deles, mas foi um gesto com alguma riqueza. E é bom tomar consciência dessa riqueza que é simplesmente ir buscar o dono de um documento que você não conhece e ter ali depois minutos de conversa com essa pessoa, fazer um favor a um desconhecido sem querer nada em troca.
Isso é uma das marcas, não só desse disco, mas de muito do que eu escrevo: é tentar prestar atenção a essas miudezas do dia-a-dia, e tentar desvendar. Essa observação é quase um trabalho de investigação, porque a importância dos gestos está tão na nossa frente que a gente não enxerga, está escondida em plena luz, e é preciso um trabalho de observação, de não tomar o óbvio como o óbvio. Esse é um trabalho também por excelência da poesia. Eu acho que ela tem essa função no mundo, de jogar um olhar estranho sobre coisas que a gente já não presta atenção, ou que a gente acha muito normais e que às vezes tem coisas extraordinárias escondidas ali no meio do ordinário.
Consideras-te um observador?
Um observador seletivo [risos], porque eu também sou muito distraído para muitas coisas.
Do primeiro para o segundo disco, houve uma mudança enorme na tua sonoridade. Agora, para o Conversa de Fila, parece que foi uma progressão mais natural. Achas que, ao terceiro disco, encontraste a tua identidade musical?
Este é uma continuidade, sem dúvida. Encontrei [a minha identidade] temporariamente. Não acho que no primeiro disco ela estivesse ainda perdida, eu também a encontrei no primeiro disco naquele momento, mas eu tenho uma tendência a tentar sempre me contradizer no trabalho seguinte, tentar sempre ir para um outro lado, surpreender, decepcionar de alguma forma o ouvinte. Acho que essa é uma virtude dos bons autores, pelo menos dos que eu admiro: essa capacidade de decepcionar os ouvintes sem necessariamente fazer uma coisa pior (não pela qualidade, mas por não atender às expectativas, não se prender a elas). Mas o Bandeira foi muito importante, e ele abriu uma porta para mim que eu ainda senti necessidade de explorar mais, por isso é que o Conversa de Fila é uma continuação. Acho que o processo de fazer os concertos do Bandeira, de ver as reações que as pessoas tiveram com as músicas do disco, a relação que elas criaram com ele me retroalimentaram e acabaram gerando essa continuidade que, no fundo, são as músicas [do Conversa de Fila]. Enquanto ia tocando o Bandeira, ia escrevendo essas novas músicas, em casa, que naturalmente têm a ver com o Bandeira porque eu ainda estava submerso naquele disco. E não senti desta vez a necessidade de fazer um rompimento, senti que ainda tinha coisas por explorar, por esgotar, antes de ir para outros lados.
Agora que assentaste num estilo específico, como foi, por comparação com o Bandeira, escrever e gravar o novo disco? No Bandeira, estavas a entrar neste universo pela primeira vez.
Bem, talvez essa vontade de continuidade seja uma vontade de tentar refazer o Bandeira melhor, porque ele foi o primeiro disco que eu gravei que eu mais toquei depois, e que as pessoas mais ouviram, por uma série de motivos: por serem canções, por ter uma linguagem popular um pouco mais acessível a pessoas diferentes, mas isso já é outro assunto. O que aconteceu é que eu, tendo trabalhado tanto sobre o Bandeira, comecei, com ele já feito, a aprender muito sobre quais as coisas que eu poderia ter feito melhor no processo de gravação, de produção, até de promoção e introdução do objeto, dos vídeos… Enfim, tudo aquilo em volta da produção de um disco, e eu queria fazer uma coisa com isso de novo que estava aprendendo. E o Conversa de Fila é essa segunda tentativa de fazer uma coisa que eu já tinha feito antes, mas aplicando coisas novas que eu aprendi, e que para mim, é uma forma de fazer melhor o que eu já tinha iniciado no Bandeira.
Também é consequência de teres crescido mais como músico?
Sim, como músico, e porque eu também trabalho sozinho. Não tenho uma agência, não tenho manager, sou eu que faço a gestão do meu próprio trabalho a solo, e também aprendi muito nesse sentido. Conheci muitas pessoas nesse processo, muitos sítios, e queria muito poder usar todas essas coisas que eu aprendi com o Bandeira, e se eu fosse para um lado muito diferente do Bandeira ia ser um começar do zero de novo. Imagina se eu decidisse fazer um disco de rock; teria que conquistar um público diferente, salas diferentes, desenhos de palcos diferentes… toda uma lógica de produção e linguagem diferentes. E no Bandeira encontrei uma linguagem, encontrei pessoas que se identificaram com essa linguagem, e o Conversa de Fila é um refinamento dessa conquista.
O que aprendeste musicalmente que ainda não tinha sido materializado no Bandeira?
Eu acho que a coisa principal é a performance sozinho em palco. Estar sozinho, apresentar as minhas músicas, falar sobre elas, comunicar com o público é uma coisa que aprendi por causa do Bandeira, muito na prática. Outra coisa foi talvez a experiência de ter gravado também com o Samba Sem Fronteiras e o Bamba Social. Esses projetos todos em volta do samba me deram ainda mais intimidade com a linguagem do samba, que é uma linguagem que eu estudo já há alguns anos e que eu já tinha aprendido um pouquinho sobre ela e aplicado no disco. Dois, três anos depois, naturalmente já aprendi mais coisas e consegui – pelo menos, espero que tenha conseguido – aprimorar ainda mais o meu espaço dentro do samba. Mas principalmente o palco, a atitude no palco, o estar no palco, foi o campo que eu mais aprendi com o Bandeira.
Estávamos a falar há pouco da vulnerabilidade nas letras. Sentias-te à vontade, no Bandeira, com mostrares-te sozinho no palco?
Sim, nunca me senti desconfortável nessa posição, porque eu acredito naquelas músicas, no que eu escrevi. Acredito não no sentido de acreditar no conteúdo, mas na pertinência daquilo, na forma como aquilo está construído, e isso dá uma segurança quase que automática; você está ali num lugar de destaque representando você mesmo, representando aquilo em que você acredita, e isso dá uma certa sensação de segurança, tranquilidade, por mais que esteja nervoso. É normal estar nervoso antes de se apresentar em público, de falar para muita gente, mas quando aquilo que você vai mostrar é algo em que você acredita e precisa, que você acha que as pessoas de alguma forma precisam, se elas estão ali elas estão interessadas naquilo que você está dizendo, e isso dá uma segurança de “estou no lugar certo, fazendo a coisa certa”, e só isso já vale o estar ali e dá coragem para levar a cabo e subir no palco. Nunca me senti muito vulnerável nesse sentido.
O que achas que vai acontecer ao apresentar este disco? Qual é a música do novo disco que achas que vais gostar mais de tocar, por exemplo?
Não tenho a menor ideia [risos], mas eu adoro não saber isso. Só descubro depois. Mas é claro, eu tenho uma intuição, e o reflexo dela são os singles que eu escolhi para mostrar antes de o disco sair: que foram o “Natal, Natal”, no ano passado, e agora o “Anos Doze”. Porque, para mim e para as poucas pessoas que já tinham escutado essas músicas antes de mim, esses foram os temas que eu acho que tinham mais potencial para provocar as pessoas. E, de certa forma, essa leitura estava certa, porque eu recebi muitas mensagens e um feedback muito engraçado. Depois de ter lançado o “Anos Doze”, [recebi mensagem] de pessoas que se identificaram muito, não só de pessoas que se identificaram a si próprias (“eu também jogava esses jogos e via esses desenhos animados”), mas também recebi muitas mensagens de mães das pessoas dessa geração (“eu ouvi essa música e lembrei do meu filho, ele fazia isso tudo que você fala na música”). Isso é incrível também, e eu não esperava! É o tipo de público a quem eu não esperava que a música chegasse: não as pessoas que vivenciaram aquilo, mas as mães e os pais dessas pessoas. E isso é o tipo de coisa que eu não consegui prever. Com certeza isso vai acontecer, vão aparecer outras pessoas falando sobre outras músicas do disco a ter reações que eu não esperava.
Apresentar o Bandeira deu-te ensinamentos que aproveitaste para o Conversa de Fila. Esperas que aconteça o mesmo agora, ao testar este novo disco?
Do Conversa de Fila para um outro futuro álbum? Eu espero que aconteça, sim. Mas não tenho muito como prever. Certamente alguma coisa vou aprender, é impossível sair desse tipo de processo da mesma forma que a gente entrou. Mas eu acho um pouco menos provável que eu, que não costumo repetir muito os formatos, faça uma coisa novamente parecida com o Bandeira ou com o Conversa. Se eu me conheço bem, acho que eu vou chegar no final dessa digressão já querendo fazer uma mudança um pouco mais radical. Ou talvez não, posso estar errado. Mas acho que é saudável a mudança, certamente alguma coisa sempre se aproveita, sempre permanece, mas se eu tivesse que fazer uma previsão, eu diria que, depois do Conversa de Fila, alguma coisa mais substancial vai mudar, no futuro.
Mas ainda tenho muito tempo, muita coisa pela frente. Nem gosto de pensar sobre isso para não tirar a energia do que interessa agora, que é essa lua-de-mel com um disco novo que está começando ainda.
Mesmo com os dois discos seguindo um caminho muito parecido, achas que ainda houve espaço para aquelas contradições de que falavas? Achas que elas ainda aparecem no álbum?
Acho que aparecem, mas talvez de uma forma disfarçada. Eu acho que o Bandeira foi um disco que abriu muitas portas e o Conversa de Fila é a escolha de uma delas, é um aprofundamento de alguns aspectos específicos do Bandeira. Talvez por isso eu acho que o próximo será uma coisa diferente, porque o Conversa de Fila, embora nunca esgote, tenta esgotar um filão que o Bandeira abriu. E tenta levá-lo às últimas consequências, mas acho que a coisa mais ousada que tem no novo disco é essa entrada da percussão, porque não é simplesmente adicionar um instrumento, é uma categoria de instrumentos que é tradicional dentro do samba, mas que é um pouco inusitada musicalmente. São objetos domésticos que, mesmo dentro do samba, acabam sendo um pouco decorativos; quando você pensa nos instrumentos de percussão por excelência do samba, pensa no pandeiro, no surdo, no tan-tan, no reco-reco, no tamborim, e eventualmente aparece algum outro instrumento meio que de ornamentação, como uma garrafa, um prato, uma frigideira, uma caixa de fósforos, um chapéu de palha. Mas nunca são instrumentos protagonistas dentro da percussão, e o que eu faço é pegar nesses e trazê-los para o protagonismo. Uma caixinha de fósforos é o instrumental de percussão dessas músicas [do Conversa de Fila] ou o prato – no disco a gente não pôde gravar com um porque era muito alto, então a gente gravou com um pires –, e isso já é um gesto que contradiz um pouco o conceito do Bandeira, que é só voz e guitarra e nada mais.
O Bandeira começou algo que o Conversa concluiu?
[O Conversa de Fila] concluiu uma parte, talvez, que se abriu com o Bandeira.
Estás a falar de reinventar os instrumentos da música popular brasileira, mas também reinterpretaste os seus autores: Caetano Veloso (com Menino do Rio), e Chico Buarque (“Anos Doze”, no Conversa de Fila). Como funciona a tua desconstrução, a tua “desinvenção” da linguagem brasileira?
Não sei se é reinventar, eu acho que é um diálogo. Tentar me colocar numa posição de diálogo com esses compositores do cânone do samba, e ter essas composições e esses compositores como interlocutores, mesmo que eles não o saibam [risos]. Isso tende a puxar as minhas composições para um nível mais alto. Essa interlocução tem sempre o objetivo de tentar fazer o mais próximo possível daqueles que eu considero os melhores sambistas. E também é tentar recuperar uma particularidade do samba, que tende a ser um género musical muito cronístico, que historicamente trata dessas coisas que a gente estava falando, do quotidiano, detalhes, o samba como testemunho do seu próprio tempo. Isso a gente vê muito em sambas mais antigos, e tem sambas que são documentos históricos, praticamente. Contam histórias que um livro de História não conta. O samba acaba sendo o registo de uma parte da História. Isso e o senso de humor do samba, que eu acho que está muito subutilizado hoje em dia, acho que já esteve muito mais presente. Eu acho que faz bem – não só para o samba, como para a canção, de uma forma geral – a ironia, o humor, a irreverência. E isso é uma das coisas que algumas músicas do Bandeira fazem, tipo o “Estar o Ó”, o “Calote”; falam sobre coisas do dia-a-dia ou de um tempo que o Conversa de Fila vai e segue e aprofunda. O “Anos Doze” é uma espécie de continuação do “Estar o Ó”, e não sei qual música seria uma continuação do “Calote”, mas eles estão mais ou menos no mesmo ambiente. Mas também tem músicas do Bandeira – como “Tragédia” – que não têm nenhum paralelo no novo disco. Talvez num sucessor do Conversa de Fila, mais para a frente, eu volte e tente, a partir do Bandeira, fazer um caminho diferente.
Reciclar faz muito parte do teu método então?
Talvez, mas não de uma forma consciente. Isso que eu falei agora, de o Conversa de Fila pegar um dos caminhos do Bandeira e segui-lo, eu pensei nisso agora mesmo, falando com vocês [risos]. E eu acho que é verdade, mas não foi de todo consciente.
Começaste a explorar a música brasileira quando vieste para Portugal. Há elementos da música portuguesa que consigas identificar que te sirvam de inspiração?
Sim, é essa atenção… Quando você perguntou se o público prestava atenção à letra, se acompanhava, eu acho que é isso. É uma coisa muito particular do público português – mais até do que o brasileiro, eu acho –, de dar muita importância à letra, e eu acho que, como cantautor, passei a tratar com muito mais esmero as letras das minhas músicas, por causa dessa atenção à letra que existe por parte do público português. Do público e dos compositores também, pois acho que isso pode ser reflexo de uma tradição poética que Portugal possui. Mas acho que não chega ao ponto de a música portuguesa me influenciar conscientemente (do tipo, “agora vou escrever uma música e a minha inspiração para ela é o José Mário Branco”). Inconscientemente, sem dúvida, está lá, porque os compositores que eu ouço e gosto mais vão acabar me influenciando, não tenho dúvida disso, mas não é uma coisa cem porcento consciente e controlada. Mas há um exercício que eu tenho vontade de começar a fazer, que é de escrever sem o meu sotaque brasileiro. Escrever em português, pelo desafio, e por achar que faz sentido estando aqui em Portugal. Não é necessariamente para eu próprio cantar, porque acho que não conseguiria, mas pensando em outras vozes, acho que é um desafio que me interessa. Mas o Conversa de Fila não é um disco que inicia esse desafio. Por enquanto, é só uma coisa de atenção com o vocabulário, ter consciência de que palavras usar para ser compreendido aqui e no Brasil ao mesmo tempo. Ou então fazer uma escolha consciente de quando não ser compreendido: tipo, no Brasil, ninguém sabe o que é esferovite, e eu, quando coloquei isso na letra do “Natal, Natal”, tinha consciência disso, foi de propósito, para marcar a diferença [dos Natais nos dois sítios], e porque eu precisava de uma rima e “esferovite” rimava [risos]. Isso feito com consciência é um exercício bom, mas por enquanto não é mais do que um jogo de vocabulário. Agora, adotar um modo de falar e de cantar português é um desafio que vai muito mais além, e preciso de ouvir muita mais música portuguesa e de exercitar muito mais… Mas quem sabe.
Tens saudades do Brasil?
De qual Brasil? [risos] Eu tenho saudades de alguns Brasis. Mas de muitos outros não tenho a mínima saudade. Não sei, sempre perguntam isso e é sempre uma pergunta que não tem resposta. Tenho saudade de algumas coisas e de algumas pessoas, mas do Brasil, de uma forma geral, acho que não. Até porque o Brasil, país oficial, não é uma coisa que eu goste muito, não é uma coisa com que eu esteja muito satisfeito. Mas dentro desse Brasil que eu não gosto, tem muitos Brasis por que eu sou apaixonado.
É fácil pôr os portugueses a sambar?
Não é muito difícil, não. Pelos menos da minha experiência, os portugueses gostam muito de sambar. Eu e os meninos do Samba Sem Fronteiras temos a filosofia de que, quanto menos se sabe dançar, melhor se dança. [risos] E isso é muito bom, porque nem todas as pessoas que vão nos nossos concertos sabem sambar, mas isso não interessa nada! Acho muito bem que sambem sem saber sambar, isso é que é o interessante. Eu sinto uma receptividade muito boa dos portugueses com o samba; existe muito interesse em Portugal pela música brasileira, há uma identificação. O que eu gostaria, e tento fazer com o meu trabalho, em qualquer dos projetos em que participo, é fazer com que os portugueses conheçam com um pouco mais de profundidade o samba. Não só que as pessoas tenham aquela noção do samba como uma música de Carnaval ou de festa, mas que conheçam a riqueza de possibilidades que o samba tem, a linguagem musical e poética sofisticada, os grandes poetas que o escreveram, as muitas histórias que o samba conta e em que foi protagonista até. É essa parte da história do samba que ainda é pouco conhecida em Portugal, apesar de existir uma simpatia e receptividade. E eu gosto de puxar mais para esse lado, mostrar essa profundidade para o público, para que eles sambem, mas sambem com consciência, com conhecimento. Isso enriquece ainda mais a festa. Não é desassociar o samba da festa e da alegria, mas é dar um contexto mais completo.
Entrevista de Inês Pinto e Daniel Dias