Luis Buñuel, o cineasta surreal
Um vanguardista, um surrealista, um virtuoso, um experimentalista, um malabarista. Muitos foram os qualificadores lógicos e ilógicos associados a Luis Buñuel. Pioneiro do vanguardismo surrealista, espalhou durante cinco décadas a diferença que caraterizava a sua corrente de pensamento e o seu talento em bruto, indo desde os dinâmicos anos 20 até aos estáveis anos 70. Documentou, dramatizou, romanceou, fantasiou, engraçou, intrincou. No seio de toda esta versatilidade, está a inerente e irreverente aventura. O espanhol conquistou a proeza de, no meio de tanta adjetivação, criar a sua própria. Um filme “Buñuelesco” emerge como algo distinto e com o indelével cunho de um realizador que criou com quanto baste de sentido e de instinto.
Luis Buñuel Portolés nasceu a 22 de fevereiro de 1900 na vila medieval de Calanda, situada na região de Aragão, no seio de uma família agrícola mas com conexões abastadas. Sendo o mais velho de sete irmãos, foi cedo que se moveu para Saragoça com o restante agregado, recebendo uma austera educação jesuíta. No entanto, e apesar de se revelar rebelde e irreverente, surpreendia com as notas francamente positivas que obtinha. Já nesse tempo, tendia para simular projetos cinematográficas com o uso de uma lanterna mágica e de um edredão. Com dezasseis anos, renunciou às convicções católicas e no ano seguinte ingressou na Universidade de Madrid, onde só se estabilizou quando estudou filosofia, após frustradas tentativas nos cursos de agronomia e de engenharia industrial. É nas residências da faculdade que trava conhecimento com alguns dos futuros notáveis da cultura espanhola, como Salvador Dalí e Federico Garcia Lorca. Os ideais surrealistas e vanguardistas que partilhavam coincidiram na criação de um grupo que ficou conhecido por “La Generación de 27”, abrindo-se a mais do que a poesia e tentando estreitar a cisão entre a cultura mais conservadora e a que emergia então. Também nestes tempos de estudante Buñuel aventurou-se em atividades hipnóticas, acabando por associar futuramente estas às experiências obtidas na visualização de um filme. As razões passavam pelo vigor do movimento entre as cenas, planos e luzes, o que colocava o espectador numa posição mais passiva mas que o fascinava. O principal mote dado para a carreira cinematográfica do espanhol viria no momento em que assistiu ao filme “Der müde Tod” (1921) do realizador alemão Fritz Lang. A devoção que nutria pelo cinema e por este cineasta estender-se-iam até à sua última expiração.
Aos 25 anos, moveu-se de malas e bagagens para a capital francesa e envolveu-se no máximo de iniciativas possíveis de forma a inteirar-se de toda a dinâmica do processo cinematográfico. Em 1929, em conjunto com o seu companheiro Salvador Dalí, aventura-se na composição do guião da curta muda “Un chien andalou” (1929). Esta primeira experiência artística do incipiente realizador colocou em atuação o método do “cadavre exquis” (cadáver esquisito em português), que consistia na distorção sintática, discursiva e estrutural do nexo da obra por parte de mais do que um autor. Este projeto incluiu também mais premissas vanguardistas, tais como os cenários oníricos e as representações difusas que tanto surpreenderam os apreciadores de arte. Com este projeto, acabariam por ser acolhidos pelo inovador do movimento surrealista André Breton e participariam em todas as atividades propostas por esta comunidade artística. Tudo isto após se assistir ao afastamento entre Buñuel e o autor García Lorca, apesar da proximidade deste ao pintor Dalí. Porém, assistir-se-ia a um novo afastamento entre o trio que se deu tão bem na capital espanhola. Na preparação de “L’Âge d’Or” (1930), o futuro pintor conheceria Gala Éluard, por quem Buñuel nutria uma acesa antipatia e que motivou o afastamento entre o par de amigos. Um filme que, para além de se mostrar anticlerical e radicalmente transcendente, seria também revolucionário pelo término de um vínculo tão produtivo e significativo para a história da arte espanhola. Desde então, Luis Buñuel viria a estabilizar o seu estilo cinematográfico, embora sofrendo várias metamorfoses influenciadas pelas realidades com as quais viria a contactar.
“A imaginação é o nosso primeiro privilégio, tão inexplicável como o caso que a provoca.”
Luís Buñuel e a imaginação.
No seu regresso a Espanha, em 1933, desenvolve um documentário denominado “Las Hurdes, tierra sin pan”, que analisava o dia-a-dia de uma aldeia recôndita e em estado deplorável na região da Estremadura. A análise visual feita engloba detalhes tão insólitos que o cunho surrealista dado à obra acaba por se fundamentar. Este relato foi censurado pelo governo espanhol pela imagem que transmitia da sua nação ao exterior. Anos depois, despoletaria a Guerra Civil do país e Buñuel emigraria para o continente americano, nomeadamente para Los Angeles. Em paralelo com a sua produção artística, apoiou também as exposições desenvolvidas no The Museum of Modern Art (MoMA), em Nova Iorque. Porém, a publicação por parte de Salvador Dalí de detalhes secretos da sua vida colocariam o realizador numa posição frágil. Foi a gota de água da sua relação, com este a nunca mais perdoar o pintor surrealista, que agora se encontrava do lado do ditador Francisco Franco e da Igreja Católica. Em 1946, emigra novamente mas desta feita para o México. A sua produção cinematográfica assentou essencialmente em filmes mais comerciais e menos minuciosos e consonantes com os seus valores e ideais. Porém, em 1950, regressaria ao seu estilo identitário com “Los Olvidados”, que descrevia as dificuldades pelas quais atravessavam as crianças de rua na capital mexicana. Outras produções seguiram esta linha expositiva e analítica, tais como “Susana” (1951), “El Bruto” (1952) e “Nazarin” (1958), esta que adaptou uma obra de Benito Pérez Galdós e cujo filme foi galardoado no festival de Cannes.
No seu segundo retorno a Espanha, em 1960 e imune às críticas por parte dos exilados republicanos quanto à sua decisão, realizou “Viridiana” com financiamento estatal, concedido de forma ingénua por parte do governo vigente. A ingenuidade reporta ao facto de nenhum elemento deste ter visionado o filme antes de ser viabilizado. Assim, e a partir de outra obra de Galdós, a produção conquistou o Palme D’Or em Cannes e satirizou as diretrizes da religião cristã, tais como a caridade e a virtude. Quando o cariz do trabalho foi desvendado, o governo não tardou em impedir a divulgação do filme de Buñuel, que via a sua subtil vingança a ser consumada.
“Sou ateu graças a Deus.”
Luís Buñuel e a religião.
Este impulso na carreira do realizador espanhol viria a despertar mentes e olhares por toda a Europa e o regresso a terras gaulesas consolidaria esse seu prestígio. Fora “Él ángel exterminador” (1962) e “Simón del Desierto” (1965), obras rodadas no México, grande parte dos seus futuros trabalhos seriam somente filmados em França. A liberdade conferida pela equipa técnica dos seus filmes permitiam que todo o potencial criativo e vanguardista do artista ibérico fosse colocado em ação e em tela. Vários temas foram abordados neste fase mais madura da sua realização, tais como um retorno à década de 30 e às suas típicas turbulências sociais em “Le journal d’une femme de chambre” (1964), adaptando um romance de Octave Mirbeau; e “Belle de jour” (1967), em que a libertinagem e o masoquismo revelam-se despudoradamente por intermédio do talento da atriz Catherine Devenue. No entanto, nem aos 67 anos Buñuel foi capaz de perdoar Dalí quando este lhe sugeriu a produção de uma extensão de “Un chien andalou”. Mais quatro trabalhos de nomeada neste amadurecimento criativo do realizador são “La Voie Lactée” (1969), “Tristana” (1970), “Le Charme Discret de la Bourgeoisie” (1972) e “Le fantôme de la liberté” (1974), para além do derradeiro “Cet obscur object du désir” (1976). O primeiro reporta a uma peregrinação a Compostela, em que o cristianismo é novamente alvo de várias críticas e é desmascarado relativamente às heresias. Esta obra bebe também do tradicional romance picaresco, em que o herói oriundo de uma classe social baixa singra a partir de travessuras que efetua até alcançar os seus objetivos. O segundo, de 1970, remonta também ao país de origem do cineasta e adapta mais um romance de Benito Pérez Galdós, enquanto que o terceiro viria a arrecadar o Óscar de melhor filme estrangeiro e no qual a sátira aos modos burgueses associada a uma toada surrealista atua como o guião estilístico do filme. “La fantôme de la liberté” descreve várias histórias surreais a partir de um só sonho e “Cet obscur object du désir”conta a história de um indivíduo maduro que é atraiçoado por uma atraente jovem.
Fumador e bebedor inveterado, Buñuel viu o seu corpo a dar sinais de desgaste a partir da crescente surdez e da emergência da diabetes na sua vida. Um cancro no fígado que lhe viria a vitimar e que estipulava para o dia 29 de julho de 1983 o seu último e real suspiro. Porém, fez as pazes com o também combalido Salvador Dalí através da correspondência que este fazia questão de estabelecer de dez em dez anos. Isto ainda referente a mais uma ideia para um projeto cinematográfico com a magnitude destes dois nomes determinantes da cultura espanhola.
Carta de Dali:
- “Querido Buñuel: de dez em dez anos envio-te uma carta com a qual não estás de acordo, mas eu insisto. Esta noite concebi um filme que podemos fazer em dez dias, não a propósito do demónio filosófico, mas do nosso diabolinho. Se te apetecer, vem ver-me ao castelo de Púbol. Um abraço: Dalí”.
Resposta de Buñuel:
- “Recebi os teus dois telegramas. Fantástica a ideia do filme, mas retirei-me do cinema há cinco anos e quase não saio de casa. É uma pena. Um abraço: Buñuel”.
Correspondência trocada entre Salvador Dali e Luis Buñuel no final das suas vidas.
O surrealismo de Luis Buñuel conheceu uma mudança de plataforma para o estilo, estendendo para além dos limites da poesia e da escrita. A transposição das realidades surreais para a tela acrescentaram significado e tangibilidade ao movimento. Contudo, não foram poucas as ocasiões nas quais o cineasta se sentiu influenciado pelo registo dadaísta, essencialmente nas abordagens sociais e burguesas que compôs regularmente. A religião foi um dos principais temas de incidência da sua obra, sendo este dissecado criticamente em quase todos os seus trabalhos. No que concerne aos moldes do seu trabalho, Buñuel não investia muito tempo nem recursos nos seus filmes, tentando economizar o máximo possível. Como muitos dos seus colaboradores indicavam, o espanhol trazia sempre o trabalho de casa estruturado e desenvolvido na sua mente, faltando só que fosse posto em rodagem. O ibérico também não era conhecido por considerar diversos atores para diferentes papéis, mantendo um elenco-base para os seus trabalhos e com os quais contou para grande parte das suas produções. Contudo, não era dado a grandes exposições sobre o que se tinha de fazer, remetendo-se a simples indicações posicionais e emocionais. Na sala de edição, o realizador privilegiava cenas longas e amplas que pudessem compreender vários aspetos relevantes para o prolongamento da história.
Buñuel era também conhecido pelo mise-en-scène que empregava nos seus filmes, consistindo nos planos num dado local que decorriam num determinado tempo. O estilo visual era funcional ao ponto de eliminar alguns detalhes de forma a centrar as atenções nos pormenores definidores das suas personagens. O seu braço direito nesta componente era o operador de câmera Gabriel Figueroa, apologista do uso do chiaroscuro e que colaborou com o realizador em sete filmes. O surrealismo advogado por Buñuel viria, por sua vez, a influir na filosofia do som na sua produção cinematográfica. A partir de detalhes sonoros que contrastavam com a apresentação visual, o espanhol conseguia subverter e controlar a experiência audiovisual apresentada e orquestrá-la a seu bel prazer. Tudo isto não obstante a gradual surdez do artista ibérico. Em proximidade com esta proposta, a música no cinema “buñuelesco” era substancialmente irónica e aplicada de forma paradoxal e desvinculada ao desenrolar da narrativa cinematográfica. O estilo predominante das faixas escolhidas era o clássico, angariando os esforços de composição de nomes como Beethoven, Mozart, Wagner, Brahms ou Debussy e fundamentando-se na sugestão sensorial proposta pela sua música. Porém, foi decrescente o uso de música nos seus trabalhos, sendo que a orientação auditiva do filme era somente conferida pela cena e pela sua interpretação.
Luis Buñuel trata-se de um dos nomes incontornáveis da história do surrealismo como corrente artística e de Espanha como nação que viu nascer figuras como Miguel de Cervantes, Pablo Picasso, Antoni Gaudí e Pedro Almodóvar, também cineasta e que se inspirou em Buñuel. Com uma apetência para a análise social e contextual em simbiose com as suas convicções e perceções. De aguçado espírito crítico, nunca se privou de abdicar da sua filosofia criativa em prol deste ou daquele elemento, custando-lhe até algumas amizades e gerando íntimas inimizades. O surrealismo foi um dos seus maiores companheiros numa jornada que se prolongou por décadas de uma produção sistemática e pouco errática. A abordagem como sonho como mote para a produção e a aposta na fusão desse com a realidade talhou-lhe com distinção o epíteto “buñuelesco” de referência para a sétima arte. O pai de um cinema vigoroso, vanguardista, um tanto ou quanto faustoso mas indubitavelmente surrealista. Foi Luis Buñuel, nome, verbo e adjetivo de uma criação compulsiva de toada impulsiva na comunhão do real com o surreal.