Luís Moreira: ‘…Shakespeare cai no mesmo problema. É um clássico, é engavetado como um clássico’
Já em 2016 tinha apresentado Noite de Reis de William Shakespeare, no Teatro do Bairro. Desta vez, não mudando de sítio nem de autor, explora Sonho de uma Noite de Verão, e fala com a Comunidade Cultura e Arte sobre os problemas que a linguagem atravessa, a pertinência das academias e problemas estruturais em Portugal no desenvolvimento das artes.
A tua relação com o William Shakespeare já é duradoura, certo?
Desde miúdo. Eu sei que gostei das palavras e da maneira como as palavras soavam, mas não dominava o sentido. As únicas personagens que compreendia, mais ou menos, o que queriam dizer eram personagens mais rudes, como a Ama da Julieta. Só comecei a dominar o sentido muito mais tarde, mas deixei que a escola estragasse Shakespeare para mim, com erudições e restrições. Em vez de nos darem aquilo que é, e aquilo que lá estão, não. “Shakespeare é só para eruditos” ainda é uma coisa que a minha mãe diz. Isto ainda está muito entranhado na nossa cultura. Tive de ir para Londres para reatar a minha relação com Shakespeare. E, olha, pelos vistos, casámo-nos.
Que outras descobertas fizeste em Londres?
Forma é igual a sentido… Jamais compreenderemos Shakespeare sem compreendermos a forma… Aprendi, sobretudo, a falar Shakespeare. Não que haja uma maneira correcta de falar Shakespeare, não é isso que eu quero dizer. Quero dizer é que há muitas más maneiras de falar Shakespeare. Eu concretizo: para dizer estes textos, os actores têm de estar preparados para soar maravilhosamente e, ao mesmo tempo, fazer sentido. Não é fácil, pois não. Por isso a maior parte das vezes o que vemos são ideias interessantes, dispositivos cénicos muito bonitos, uma luz fantástica, uma música bombástica e mais nada. Não percebemos a história porque os actores não estão a contar-nos a história, não estão a vivê-la. Estão a declamar poesia. Para mim foi muito importante compreender como é que a forma te ajuda ao sentido. Quando eu digo forma digo ritmo, rima, repetição, aliteração, assonância…por aí fora. Os ingleses ensinam isto muito bem. Então na Guildhall!
O Godard tinha no título dum filme, há pouco tempo, a expressão Adeus À Linguagem (que também podia ser interpretado, segundo o mesmo, como um olá). O que achas que está a mudar neste sentido e qual a importância de dizer os clássicos no meio disto?
Os clássicos ainda servem como referência. Precisamos de um Romeu e Julieta como metáfora de um amor juvenil, da mesma forma que precisamos de um Beckett como metáfora de um obsessivo-compulsivo, ou, sei lá, de um Tchecov, para russos embriagados. Os clássicos — já não sei bem quem é que disse isto — são aqueles livros que todos leram e ninguém leu. Já sei quem foi, foi Mark Twain. O que ele quer dizer com isto é muito interessante. É que ninguém vai admitir que nunca leu a Odisseia em conversa com amigos. Sabes porquê? Porque ninguém leu. E o único que leu também não se vai querer gabar, porque então ficaria visto como o gabarolas. Assim, nadamos entre banalidades que aconteceram, mais ou menos na Odisseia. Shakespeare cai no mesmo problema. É um clássico, é engavetado como um clássico. Isso cria um afastamento do público. Eu desresponsabilizo-me de compreender porque é um clássico, e não está feito para eu compreender. Se não integrarmos mais os clássicos na nossa linguagem, eles vão deixar de ser clássicos. Vão passar a ser obsoletos. Por exemplo, ainda estudamos a conjugar verbos com “vós”, mas ninguém o usa.
És muito crítico em relação ao modo de falar standard, por exemplo, na tv?
Na tv fala-se calão, e isso eu não gosto. Excepto, claro, se o personagem falar dessa forma. Isso é construção de personagem. Agora, o português padrão não é o calão. Portanto, se por falar standard me queres dizer o português que normalmente sai pela boca dos actores, então aí é só mau. No outro dia, a propósito de não sei bem o quê, estava a prestar imensa atenção a uma jornalista a falar. E ri-me que nem um perdido! Sabes porquê? Porque ela não abria a boca. E, a dada altura, disse “mestério dachinances”, pelo qual deveríamos ter percebido, como por magia (ou pelo ventríloquo) “ministério das finanças”. A sério. Não dá. No outro dia tive uma discussão com uma aluna. Ela dizia que ninguém no século vinte e um, com menos de vinte ano, falava assim, como eu lhe estava a ensinar. Respondi-lhe “então falam mal.” Ela respondeu-me “mas eu tive 16 a português!” E eu respondi “escrito.” E ficou calada.
Acreditas que a ideia de liberdade e de “correcção académica” podem coexistir? Do género, só poder dar erros se souber que o são? Isso aplica-se não só à linguagem mas às artes, quando são disruptivas…
Têm de coexistir. Eu posso — e devo — ser livre de errar. Tenho é que saber que estou a errar.
Fala-me agora sobre o teu elenco. Quem são, como os conheceste, como os escolheste…
O elenco é uma grande salada grega. Há actores da Act – Escola de Actores, onde estudei e onde os conheci. Há actores do conservatório, com quem já tinha trabalhado e já gostava bastante do trabalho deles. Há actores da EPTC que conheci há muito pouco tempo e, outros, que seleccionei por casting. Mas tenho de dizer que este não seria o elenco original. É, provavelmente, a quinta versão do elenco original. Se bem que não sei muito bem o que eu quero dizer com isto. Houve desistências, indisponibilidades, doenças, e já não sei quantas pessoas substituí. Uma coisa é certa: gosto de todas estas pessoas com quem estou a trabalhar. E isso para mim é muito importante. Escolhi-os com base na ideia que tinha do espectáculo e o que eu queria que cada um fizesse. Se é fetichista? Sim, pode ser. Mas eu sabia que queria uma fada como a Sónia Lisboa, por exemplo, desde a primeira vez que pensei neste espectáculo há três ou quatro anos atrás.
E as tuas encenações antes desta?
As minhas encenações começaram agora. Acho eu! Eu, na verdade, nem sei muito bem o que ando a fazer, mas sei que trabalho muito e dá-me imenso prazer. Mas, bom, concretizando: as primeiras encenações foram “encomendas”, no sentido em que a ideia não tinha partido de mim. Até a que fiz na Guilherme Cossoul foi uma proposta da parte deles, para participar no festival da paixão, que acabei por ganhar com esse mesmo espectáculo. É um prazer muito subtil introduzir isto na conversa. Eu acho que se tivesse ganho um Óscar estaria constantemente a falar sobre isso…voltando ao assunto. Eu diria que agora é que começo a encontrar a minha linguagem. Gosto de espectáculos que sejam baseados no trabalho de texto. É uma afirmação destas devia ser descabida, mas não é! E isso é que é verdadeiramente estranho. Os espectáculos de teatro tornaram-se dispositivos cénicos para actores experimentarem coisas interessantes, com um total desrespeito pelos espectadores. Eu gosto de espectáculos com texto, com histórias, com intenções bem marcadas, com jogos de sentido. Sou eu à procura da minha sinfonia. Antes do Sonho, ou da Noite de Reis, toquei notas mais contemporâneas. Também gosto muito, não tenho nada contra! Mas a música que faço com a poesia é o meu paraíso como encenador. As minhas encenações tendem a ser assim, uma manifestação do meu prazer em trabalhar texto, e em trabalhar em teatro. Liberta-me das garras da depressão e faz-me dar graças por estar vivo.
Quem te inspira, de artistas vivos, a esse contacto com uma arte poética?
Como actor, o Mark Rylance. Estou farto de dizer que é o melhor actor vivo do mundo, mas ninguém me ouve. Hollywood “descobriu-o” agora. Agora, veja-se bem!..,coitado do homem se estivesse à espera de reconhecimento da indústria. Cá em Portugal? Todos os actores, encenadores, músicos, bailarinos, que trabalham em condições miseráveis, e que mantêm o Sonho vivo. Isso é que é inspirador.
Desejos de futuro?
Ganhar dinheiro. Ou aprender a ganhar dinheiro. Ou, melhor ainda, aprender a ganhar dinheiro a fazer teatro. Não é impossível. Era preciso haver era maior transparência nas artes. Andamos todos a jogar ao monopólio e a dar voltas aos tabuleiros mas ninguém tem dinheiro para comprar casa. Desejo mais oportunidades de trabalho. Muitas mais! Sou novo…
Achas que é esse nevoeiro pouco transparente um dos maiores entraves às artes em Portugal?
É dos maiores. Há dinheiro, só que está é mal distribuído. E depois da má distribuição ainda vêm os amigos dos distribuidores, que são os directores, e depois ainda vêm os programadores. Quando o dinheiro te chega, já não chega. É tudo um grande disparate. Mesmo, estas coisas aborrecem-me imenso… O Estado tem a obrigação de apoiar as artes. Mas são os artistas, com os seus ordenados enormes, e com os seus justíssimos impostos, que suportam a máquina do Estado. Nunca passámos uma altura de tanta negligência ou desinvestimento em relação às artes como agora. Paradoxalmente (ou não!) nunca tantos grupos novos surgiram e se insurgiram como agora. Porquê? Parece-me que assistimos àqueles movimentos culturais da História, que são precedidos quase sempre por uma crise.
Esta década, no Teatro português, parece-te histórica?
Absolutamente. Nem a comunicação social consegue acompanhar esta revolução. Temos teatro tão bom, tão bom! Tão bons actores. E tantos…não há é trabalho para todos.
Entrevista de Luis Miguel Davies