Mais que um festival de música, o Tremor é um festival humano
À quinta edição, com lotação esgotada de 1500 pessoas, o Festival Tremor, em São Miguel, nos Açores, voltou a mostrar porque é um monstro à parte dos restantes festivais de música nacionais. Quando em praticamente todos os restantes festivais nacionais se juntam os grandes nomes que marcam a cena musical internacional, uma congregação de multidões em recintos de maior ou menor dimensão, no Tremor o recinto é a ilha de São Miguel, e essa é, à partida, a proposta que faz deste um exemplar completamente à parte. Sendo verdade que outros festivais estendem também o recinto a diferentes espaços, como no Mexefest, por exemplo, o que é inegável é o quão diferenciador é usar uma ilha com o calibre de São Miguel como espaço para experiências musicais. Decorrendo também em ambiente urbano, com um sábado todo decorrente em Ponta Delgada e concertos pela cidade também nos dias anteriores – e, novidade deste ano, uma noite de concertos na segunda maior cidade da ilha, a Ribeira Grande – o Tremor arranja o espaço para juntar a música àquele que é o grande prato da ilha de São Miguel: a natureza. Dessa aliança especial entre música de franjas, com artistas maioritariamente desconhecidos do grande público, e espaço, juntamente com todo o carinho e dedicação daqueles que o organizam, nasce precisamente a identidade do Tremor.
Concebido para injectar ainda mais vida nos espaços que, com a crise, ainda se mantinham de pé, o Tremor consegue, além disso, injectar nos presentes uma sensação de profunda felicidade que percorre todos os que em São Miguel se encontram durante estes dias. As pessoas encontram-se, conhecem-se, conversam, cria-se um ambiente de festival em família, um à vontade que a todos percorre e que torna impensável imaginar um Tremor de escala massiva, principalmente porque esta compactação é um dos seus grandes pontos fortes. As pessoas conhecem-se dão a mão uns aos outros e organizam-se para se transportarem para os lugares mais remotos, “obrigados” pelos concertos surpresa do Tremor na Estufa e do Tremor Todo-o-Terreno a sair da zona urbana e a visitar, como neste ano, o Parque Terra Nostra, as Termas da Ferraria e as Sete Cidades. E como toda a malta adora águas termais, os concertos no Terra Nostra e na Ferraria, respectivamente com Tó Trips e João Doce e o brasileiro O Gringo Sou EU, eram oportunidades de delírio colectivo dentro de água, quase até demasiado quente para albergar tanto calor humano.
Um dos pontos mais altos do festival foi também esse Tremor Todo-o-Terreno (que põe um grupo de pessoas a percorrer, enquanto ouve uma composição feita especialmente para o efeito, um trilho pedestre até chegar ao local do concerto) e que este ano culminava no local denominado como Salto do Cabrito, espaço de beleza natural intensa. Aí, à frente de uma cascata, os Tír na Gnod presentearam os presentes com rituais primitivos ambientados com texturas electrónicas ásperas, num espectáculo que foi visualmente um dos pontos altos do festival e um dos mais estranhos e insólitos. É preciso não temer esse insólito, pôr-mo-nos nas mãos de quem organiza o Tremor e deixarmo-nos levar pela curadoria que está nas suas mãos, e deixar que aconteçam momentos destes.
No sábado, ao ver a multidão a arrastar-se de uns locais para os outros, alguns locais afirmavam nunca ter São Miguel visto tanta gente. O turismo na ilha está em franca ascensão e, com a junção, ao mesmo tempo, do Tremor e do Azores Airlines Rally e na mesma semana, tudo estava lotado e até trânsito se via em Ponta Delgada, com várias ruas e estradas fechadas para o efeito.
Mas não foi só São Miguel que encheu. António Pedro Lopes, co-organizador do festival, em antevisão ao mesmo, afirmava à Comunidade Cultura e Arte ter o sonho de que este pudesse acontecer noutras ilhas. A edição deste ano acabou por comprovar que este desígnio se encontrava mais perto do que António dava a entender. Mediante sorteio em passatempo, cerca de 60 pessoas foram escolhidas para um Tremor na Estufa Especial, com a duração de 14 horas, entre as 4h30 e as 19h00 de sexta-feira. Como em todos os outros Tremor na Estufa, não era sabido, à partida, qual o destino e quem tocaria neste evento apenas com hora marcada no mapa. Ora, quando essas cerca de 60 pessoas se viram, naquela madrugada, a deslocar em direcção ao Aeroporto de Ponta Delgada, perceberam que o Tremor iria sair finalmente de São Miguel, neste caso em direcção a Santa Maria, das restantes oito ilhas dos Açores a mais próxima de São Miguel. Era um delírio que, organizado em conjunto com o Governo dos Açores, tinha como objectivo proporcionar a estes sortudos uma visita guiada à ilha, com passagem nos pontos mais importantes, direito a refeições e, claro, como estamos num festival de música, um concerto. Mas era também a oportunidade de fazer o Tremor chegar aos cinco mil habitantes desta outra ilha ali tão próxima. Para cumprir esse desígnio as honras de tocar couberam aos brasileiros Boogarins, um dos nomes maiores do festival, que trouxeram o seu rock psicadélico a uma plateia híbrida de tremorenses e marienses, uma junção do público do Tremor com as crianças, os idosos e aqueles que se deslocavam ao centro de Vila do Porto na sua hora de almoço para ver este evento extraordinário desenrolar-se à sua frente.
Ao contrário dos restantes Tremor na Estufa, onde o artista escolhido toca apenas naquele momento, os Boogarins, que vão agora nos próximos dias tocar por Portugal Continental, tocaram também, na noite sábado, no Coliseu Micaelense, em Ponta Delgada. E se, para esta multidão de pessoas que se concentrava no maior espaço do festival, os brasileiros se mostraram na sua cara mais habitual, por entre texturas e ambientes imersivos que o vocalista e guitarrista Dinho adorna com a sua voz e jeitos doces, a verdade é que não havia como superiorizar a descontração daquele concerto em Santa Maria, onde tudo – tirando o Sol que se mostrava por detrás do palco – parecia reunir-se para culminar naquela bela experiência.
Mas o festival esteve muito longe de se fazer só de Boogarins e de estufas e percursos pedonais. Logo ao segundo dia, Mykki Blanco, proporcionou, no Solar da Graça, taberna regional, um dos mais desconcertantes concertos do Tremor 2018, com o seu misto de delicadeza e agressividade a culminar no artista americano a atirar tábuas de madeira e a escalar corrimãos, tudo enquanto desconstruía a sua persona de palco. Começando o concerto com roupas de mulher e peruca loura, despoja-se furiosamente de cada item, até acabar, em tronco nu, com a peruca na mão e a sua masculinidade à mostra, questionando a própria essência do espectáculo que a todos proporcionou.
Marcadamente exuberante foi também o concerto de Aïsha Devi no arquitectonicamente incrível Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, na noite em que o Tremor subiu à Ribeira Grande. A sua mistura de tecno dançável acabou por carecer de alguma variedade ao longo da performance, mas o espectáculo visual proporcionado por Emile Barret, que colaborou neste projecto com Aïsha, compensou tudo isso, numa experiência para os olhos que, a cada momento parecia não ter por onde parecer ainda mais estranho, mas que se reinventava em cada vez mais novas e estranhas experiências acídicas, envolvendo até um anão forrado a tatuagens e ouro, envolto em chamas digitais e em estátuas deíticas hindus. Também no Arquipélago, Julius Gabriel e José Valente levaram-nos pelas texturas do saxofone e da Viola d’Arco, mostrando-nos além do seu virtuosismo no manejamento de ambos, os espaços que descobrem com as suas experimentações, cada um à sua maneira, muito baseadas em pedais e loops.
Outro dos pontos altos da edição deste ano do Tremor passou-se na tarde de sábado, quando Mal Devisa, despojada de tudo além de um baixo, um bombo e da sua arrepiante voz, encheu a Igreja do Colégio para um concerto que só pecou pela curta duração. O bramido da americana tocou certamente todos os presentes, mas com mais um par de músicas teria alcançado um efeito ainda mais pleno, pelo que resta esperar pelo seu regresso a terras nacionais, concerto ao qual é quase garantido que todos os presentes vão sentir vontade de se deslocar.
Também os Ermo, dentro de um género completamente oposto ao de Mal Devisa, foram capazes de libertar, na Garagem Antiga Varela, a sua mistura de electrónica distorcida com sotaque de Braga, por entre luzes strobe de intensidade máxima que cegaram toda a plateia. O efeito luminoso era tão devastador para os olhos que não se percebe se o interesse é rodear a dupla de ainda maior secretismo, por junção às suas caras tapadas, ou se a direcção das luzes foi apenas mal planeada. A verdade é que a irrepreensível prestação do duo acaba por ficar manchada nos nossos olhos precisamente pela luminosidade que ainda cá está pregada. Ainda para mais porque a iluminação dos concertos é um dos pontos mais irrepreensíveis do Festival que, sempre nos mesmos tons de vermelho, azul e verde, faz um excelente trabalho em criar ambiente único em cada espaço.
Poucas horas antes, também os dinamarqueses Liima, depois de terem apresentado o seu novo álbum 1982 na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, rumaram aos Açores para trazer a sua pop electrónica por entre uma efusividade completa tanto da banda como do público, em perfeita comunhão ao longo do concerto, com momentos como entoações conjuntas do refrão “Jonathan, I can’t tell you I masturbate”. Há também a destacar os Zulu Zulu, que juntam as suas óbvias influências em Animal Collective às vestes tribais africanas e puseram toda a gente a dançar no Raiz Bar, os Dead Combo, que apresentaram o seu novo álbum, a ser editado em Abril, e para Baby Dee trazer o seu humor perturbador ao Auditório Luís de Camões, onde logo no primeiro dia os Três Tristes Tigres tinham feito soar a nostalgia de uma certa parecença a Portishead, mesmo dia onde também Rafael Carvalho, virtuoso da viola da terra, instrumento açoriano, se uniu a FLiP, produtor experimental de São Miguel, para trazer aos nossos ouvidos uma óptima amostra das misturas que ainda há por fazer.
Isto porque o Tremor, na sua gana de trazer o que de melhor se faz nas franjas da cena musical internacional, não se esquece nunca do local onde se encontra, e dá precisamente espaço a que aquilo que de melhor é feito no arquipélago se manifeste e se apresente tantos aos locais como à grande quantidade de público que se desloca de propósito para o evento. Se no início do festival havia dúvidas entre a organização face aos artistas locais que poderiam ser opções para entrar no cartaz, a verdade é que, passados 5 anos, já foram programados 40 artistas açorianos, e não há qualquer dúvida que o Tremor foi catalisador disso mesmo, e que está empenhado em dar cada vez mais ferramentas aos locais para conseguirem chegar mais longe, e exemplos disso são também os concertos de artistas locais como os We Sea ou o rapper Goldshake.
Para quem chega a São Miguel vindo de fora, é difícil imaginar uma ilha sem esta agitação do Tremor. No resto do ano não há Parque Terra Nostra imbuído de som, e o Salto do Cabrito é local ermo onde apenas o barulho da cascata é audível. Também em São Miguel, no domingo após o Tremor, já se sente a pacatez da cidade que ainda há poucas horas pulsava por todos os lados. Onde foram todas estas pessoas, que até aqui se tinham congregado todas para estes momentos inesquecíveis? Algumas ficam por cá porque de cá são, de volta às suas rotinas habituais, outros regressam ao continente, com as memórias de uns Açores, que, apesar de tudo, não são os Açores de todo o ano. Mas, daqui a um ano, temos a certeza que cá estarão todas outra vez, revivendo os momentos aqui bem passados e vivendo essas novas experiências que virão. Porque mais que um festival de música, o Tremor é um festival humano.
A Comunidade Cultura e Arte viajou a convite da Azores Airlines, da Visitazores e do Neat Hotel Avenida.