Mais um ano e mais episódios infelizes na praxe académica
Todos os anos, infelizmente, voltamos a falar de um dos mais recorrentes e fracturantes temas da nossa sociedade: a praxe. Mas da mesma forma que todos os anos vários jovens nas redes sociais proclamam que os abusos não acontecem só nas suas faculdades ou só cursos e que, por isso, não reflectem o espírito e os valores da praxe, continua a fazer sentido debater este assunto.
Depois de mais um ano, onde aparece mais uma remessa de livros com os dez mandamentos do caloiro – no ano passado, surgiu na Universidade do Porto um livro de sobrevivência para o caloiro – surge, num canal que me custa invocar, uma imagem que, de forma sucinta, captou uma praxe na Universidade da Beira Interior, onde três jovens estão a coreografar sexo a três. Mas nem me atrevo a discutir estas imagens, que ainda não vi a serem corroborados por outros meios de comunicação que respeito, apesar de a polémica estar centrada aí. Vou, sim, falar de outros dois casos.
Nesta mesma universidade, um aluno de primeiro ano (não caloiro) “apresentou queixa à faculdade depois de ter sido vítima de uma praxe violenta”, por ter sido levado com outros colegas “para a Serra da Estrela durante a noite, obrigado a despir-se, a colocar-se de gatas e agredido com pás”, assim noticiado pela SIC Notícias. E este devia ser o tema de revolta por parte dos alunos desta universidade. Este devia ser um assunto preocupante e que revela o descontrolo das praxes, por não existir uma verdadeira legislação que controle estas práticas e que, em muitos casos, tem o apoio directo dos reitores e directores. Estes mesmos reitores, não digo que seja o caso do reitor da UBI, incentivam os alunos a participarem nas praxes ou, como é o caso do reitor da Instituto da Universidade do Técnico que defende abertamente as praxes na comunicação social.
Outro caso, não menos preocupante, que revela de forma sintomática a toxicidade desta cultura que está enraizada no nosso ensino superior. Na Faculdade de Arquitectura de Lisboa, realizou-se uma praxe também simpática, onde tanto os alunos novos como os ditos praxantes participaram nas actividades somente vestidos com as roupas interiores, aparentemente sem qualquer tipo de obrigatoriedade, pelo menos foi assim afirmado por uma das representantes da Comissão de Praxe da dita faculdade. À televisão, o presidente da mesma escola afirmou a pontualidade destas situações, devido ao calor extremo naquele dia, mais precisamente, trinta e seis graus. Que deliciosa justificação! Para além de não ser permitido estas situações no campus, independentemente da temperatura ambiente esta desculpa esfarrapada (não justificação), este argumento demonstra claramente a ligação totalmente parcial e perigosa das instituições com as praxes. Assim, dificilmente algo vai mudar e as vítimas não serão protegidas. Porém, para meu espanto, houve uma aluna de primeiro ano que para a televisão afirmou ter participado de forma voluntária e que, na sua opinião, não viu qualquer tipo de problema com a actividade em questão. Isto já é preocupante a outro nível! Não chega ao estado de Síndrome de Estocolmo, mas questiono-me que posição devo tomar quando a própria aluna de primeiro ano considera estas práticas do âmbito normal.
O que é curioso nestas histórias todas é que todos os anos fazemos um género de reset e esquecemos de todas as polémicas e casos que ocorreram e continuam a ocorrer à nossa volta. E isso é visível nos próprios defensores exaltados, os cavaleiros brancos, que, para além dos argumentos utilizados (já num estado para além do de evaporação) e de se esquecerem do passado histórico, muitas vezes, das suas próprias faculdades, perdem-se nas próprias polémicas ao darem uma atenção desmesurada a noticiários como o da CMTV. Acabamos, assim, por não debater o que realmente interessa: a vítima, o abusador e o abuso (algo cheio de precedentes nas ditas tradições destas mesmas faculdades).
O meio termo dificilmente algum dia chegará. As duas barricadas estão demasiado distantes. Mesmo assim, o debate continua a fazer sentido. E, para quem leia o meu texto até ao fim, conseguirá perceber que não quis discutir as praxes, já tive oportunidade de o fazer. Tentei, sim, colocar estes casos em cima da mesa para que não sejam esquecidos facilmente.