“Mal Viver” / “Viver Mal”: personagens à procura de alma na arquitectura do cinema
Este artigo pode conter spoilers.
Mal Viver Mal: é este o enigma inexorável que nos aguarda ao combinar ambos os títulos dos filmes do díptico que o cineasta português João Canijo leva ao festival de Berlim. Com a particularidade de ambos os filmes serem exibidos em duas secções competitivas diferentes — Mal Viver na competição oficial, e Viver Mal, nos Encontros. Na verdade, mesmo separados, mantêm essa ligação umbilical. De resto, um aspecto com alguma relevância no cinema de Canijo.
É este anagrama, ou campo-contra-campo, em que vivemos durante algumas horas. E onde observamos o cinema, mas somos também observados. Certa é a habilidade de João Canijo em usar o cinema para fazer estas ligações e, em particular, para retirar o tutano da representação, sobretudo feminina. Um director de actrizes? Por certo. Aliás, o seu próximo filme, Encenação, como nos informa na nossa entrevista, realizada poucos dias antes da partida para Berlim, será um retorno às actrizes. O seu nome tem de ser referido: desde logo, Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida, em Viver Mal; além de Beatriz Batarda, Filipa Areosa, Leonor Silveira, bem como Leonor Vasconcelos. Nuno Lopes e Rafael Morais contribuem com intensidade e testosterona neste filme que é um verdadeiro pas de deux. Por aqui teremos este grupo de personagens à procura da sua própria alma (curiosamente o nome do único animal no filme, e que é também o ser mais bem tratado).
Não deixa de ser curiosa a forma como Canijo se serve da arquitectura para erguer o seu filme duplo. No caso, um hotel familiar em Ofir, no concelho de Esposende, perto do Porto. Em Mal Viver, essas paredes servem de cenário em que as proprietárias vão tricotando os seus queixumes e mútuas acusações que abrem feridas no passado, num estilo que o melhor cinema de Bergman nos serviu. E que podem até sugerir uma proximidade ao plano subjectivo de James Stewart, na Janela Indiscreta de Hitchcock. Ainda que sem o nosso voyeurismo, já que estamos necessariamente implicados como que se passa no interior de cada quarto e sala. É nesse entrelaçado de diálogos cruzados, sem beliscar a fachada de hotel de charme, que nos lança um novo desafio em que a combinação de áudio exige uma multifacetada atenção sensorial. É aqui que se desenvolve esse corpo de cinema sugando as angústias umbilicais e receberá depois o devido contra-campo em Viver Mal, colocando os grupos de turistas de fim-de-semana nas tramas de Stridberg que Canijo adaptou para o ecrã. Um pouco como se vagueassem num purgatório, entre o que repudiam e anseiam.
Apesar da proximidade formal a Smoking, Non Smoking, que Alain Resnais trouxe a Berlim há 30 anos, o gesto de cinema de Mal Viver/Viver Mal é de uma natureza diversa. Onde o referido campo-contra-campo convoca um cinema que faz dos atritos e do lado sórdido das relações familiares, bem como das suas lágrimas e suspiros, o seu motor de combustão.