Mamã, olha p’ra mim!

por António Pedro Moreira,    26 Novembro, 2020
Mamã, olha p’ra mim!
Fotografia de João Amorim

Há um ano e pouco estava no Algarve, talvez Monte Gordo ou Altura, não me lembro ao certo… Mas lembro-me de passar por um parque infantil e ver um puto do topo da praticamente inescalável colina que é um escorrega de plástico dizer: “Mamã! Mamã! Olha p’ra mim! Olha p’ra mim!” Talvez a mãe se tivesse distraído para reparar num carro estranho que passava na estrada, para notar na diferença de idades entre um casal ou, até, na peculiar cor que o sol daquele dia oferecia. Uma vez corrigida apontou a sua atenção indivisa para o infante enquanto ele deslizou rumo àquela experiência que ainda tinha ares de nova – cedo descobriria que o escorrega já não chegava.

O puto não pediu à mãe para olhar para ele porque tinha medo e queria que um adulto responsável estivesse atento. Não estava a desafiar o progenitor, também. Nesses casos as crianças falam pouco, avançando pé ante pé enquanto lançam um olhar pontual ao adulto para perceberem que podem continuar, que é seguro. O puto também não queria uma testemunha. Duvido que pensasse assim tanto à frente que planeasse um encontro entre a mamã e os seus colegas quando a pré-primária começasse, para que ficasse claro quem era o campeão do escorrega. O que o puto queria… era que a mamã olhasse para ele. Só isso. O puto queria que a mamã olhasse sempre para ele mas, algures entre o nascimento e aquele momento, ele percebeu que não lhe bastava existir para ter atenção, que precisava de fazer coisas espetaculares para reter a retina de quem lhe dera VIDA.

Ele chamou a mamã, mas eu também o vi, enquanto ele desafiava a morte em direcção à areia. E depois continuei, entrei no carro e vim até Quarteira, e ia pensando nele. “Mamã, olha p’ra mim!” Ouvia essas palavras dentro de mim e transformava-as, moldando-as a uma realidade onde não chegam escorregas, e senti uma pergunta indesejada mas que tinha de assumir – será que eu era aquele puto e a mamã o mundo todo? Será uma página no Facebook, depois no Instagram, textos aqui, programas, entrevistas… as viagens com desafios crescentes… será tudo isso um berro ao mundo, uma exigência disfarçada de pedido disfarçado de naturalidade, para que me vejam? Ir até Singapura por terra? Okay. De Portugal à África do Sul de bicicleta? Hum, okay. Fazer América Central só de boleia e sem pagar estadia? Porquê? Ir, num qualquer futuro, a correr de Luanda a Maputo ou de monociclo de Portugal à Coreia do Norte? Estúpido. P’ra quê?! Pelo desafio? Mas o que é o desafio, em si? O que é que vem dele? O que é que vale uma coisa que é feita só por ela mesma? Pela superação e mais catorze sinónimos, mas é só uma lógica circular que, no final, não explica grande coisa.

É estranho porque admiro pessoas que se propõem desafios só pela natureza do desafio, independentemente do sucesso. Raramente questiono se aquilo que querem é que olhem para elas e quando o faço sinto-me mal com isso e tento parar de o fazer. Mas quando sou eu, já não sou tão simpático, encosto-me à parede e aponto o dedo a mim próprio perguntando-me “P’ra quê tanta merda, meu?! Dizes que não curtes a obrigação de meter coisas no Instagram, que só o fazes porque te ajuda a vender livros… mas será que é mesmo isso?! Uma viagem não existe se ninguém estiver a ver?!” Desafio-me aqui, também, mas já não é pelo desafio – desafio-me porque me quero perceber. E quero perceber-me para saber que caminhos valem a pena percorrer, tanto mundo fora como dentro de mim.

Talvez um pouco assoberbado, peço-me um minuto e saio à rua para pensar melhor. Não tenho grandes certezas na VIDA. Tenho certeza que estou a escrever isto, mas se quiser ser verdadeiro, só tenho a certeza que estou a ter esta experiência, pode não ser real. No domínio da mente ou daquilo que me motiva, portanto, menos certezas tenho. Parece-me evidente que há pessoas que só viajam porque é a maneira mais eficaz que descobriram para que os outros olhem para eles e outras que não têm conta de Instagram, nem querem ter. Outras que são tímidas mas publicam quase todos os dias porque querem desafiar as pessoas a tirar as teias das ideias que têm acerca doutros povos e, ainda outras, que até gostavam de ter Instagram, mas convencem-se de que odeiam a ideia… porque se querem sentir superiores aos outros, pobres e banais humanos.

Havendo um pouco de tudo, tento perceber onde estou.

Pensava nos viajantes do antigamente e dei por mim a vê-los como mais autênticos, não tanto pelos mapas de papel que usavam, mas por terem a viagem só pela experiência da viagem. É como se, quantas mais razões se adicionam para as pessoas viajarem, menos autêntica a viagem seja. A questão é que… talvez uma viagem não tenha de ser autêntica, tampouco as suas motivações. Viajo por mil razões. Admito que nas mil razões para alguns desafios mais estranhos a que me proponho possa haver um mamã-olha-para-mim. E aceito isso. E custa-me escrever isto, porque tenho medo que pensem que é só por isso que viajo. Mas escrevo na mesma, porque não quero dizer “Olhem para mim a não me importar que os outros olhem para mim!”

O que é importante, então? É importante saber por que viajo, mas só posso saber, ou estar perto disso, se aceitar perguntas desconfortáveis. Se me negar uma razão, por achar que sou superior a ela, talvez isso apenas signifique que a razão é tão forte que sabe disfarçar-se. Tenho mil razões para viajar e para tudo, mas não sei ao certo por que faço o que faço. As perguntas que coloco dançam juntas e só confundem, mas pode ser que sejam parte de uma coreografia que só se percebe no final.

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