Manoel de Oliveira, o cineasta de um século
Manoel de Oliveira tratou de assegurar um estatuto de perenidade no meio cinematográfico. Dedicando quase oito décadas ao prazer da sétima arte, explorou, experimentou, documentou, filmou, orientou, interpretou, relatou. De origens portuenses, foi com bases nortenhas que deu corpo e luz a muitas das suas ideias, ideias essas que se mantiveram intactas e bem vivas para além de um século de vida. Foi sustentado numa extensão de vida que não previa que se foi indo e compondo, produzindo, concebendo e conferindo tudo o que viveu para o grande ecrã. Um século tornou-se curto demais para a dimensão de Manoel.
Manoel Cândido Pinto de Oliveira nasceu no dia 11 de dezembro de 1908 na freguesia de Cedofeita, pertencente ao concelho do Porto. Cresceu no seio de uma família burguesa da região Norte do país, sendo registado como “Manoel”, designação que preservou não obstante a revisão ortográfica ocorrida na primeira República. Filho do primeiro fabricante de lâmpadas em Portugal, tinha dois meios-irmãos, fruto de uma anterior relação do seu progenitor. Após formar-se num colégio de jesuítas, deixou-se conquistar pela paixão que o desporto o despertava, praticando atletismo com bastante sucesso, sendo campeão nacional de salto à vara. Para além disso, a sua juventude desdobrou-se nos prazeres do automobilismo, da vida boémia e do cinema.
Esta última referência levou-o a frequentar aulas do cineasta italiano Rino Lupo, em tempos em que este estava radicado na cidade portuense. Para além destas aulas, outras das influências culturais que recebeu foram concedidas pelas tertúlias no café Diana, na Póvoa de Varzim, com nomes como Agustina Bessa-Luís ou José Régio. Nas aulas que tinha, foi apreciando o experimentalismo e a vanguarda usados na rodagem de documentários, tal como em Berlin: Symphony of a Great City (1927), do alemão Walther Ruttman. Daí, adveio a ideia de produzir a sua primeira curta, abordando o Rio Douro quatro anos depois em Douro, Faina Fluvial (1931). Não obstante o desagrado de uma crítica austera e conturbada nacional, foi unânime o sucesso granjeado para os que viam de fora. Este projeto tornou-se o primeiro de muitos documentários que faria, para além de semear aquilo que seria uma senda de retratos cinematográficos do país dentro deste género.
No entanto, era amiúde que representava em outros trabalhos de outros produtores, sendo ator no segundo filme sonoro de origem portuguesa. Este era nem mais nem menos que A Canção de Lisboa (1933), de Cottinelli Telmo, onde contracenou com Vasco Santana. A sua experiência como ator fortaleceu a sua vontade de se afastar da toada popular do cinema feito então, dando amplitude ao seu talento e ao fervor criativo que possuía, apesar de voltar à frente da objetiva no filme do alemão Wim Wenders Lisbon Story (1994), em que surge como uma personagem que se cruza com o protagonista. Já na década de 40, adaptou o conto Os Meninos Milionários, de João Rodrigues de Freitas, e deu à luz o icónico Aniki-Bobó (1942), retrato ficcionado da infância de algumas crianças da Ribeira do Porto, em especial de Carlitos e Teresinha. Algumas fragrâncias do neorrealismo italiano são detetadas neste trabalho que se viria a eternizar como um dos mais mediáticos projetos cinematográficos portugueses. No entanto, o fracasso comercial que então gerou levou o cineasta a tirar uma década de fora da criação artística, envolvendo-se com afinco nos negócios familiares e nas suas viagens ao interior transmontano. Em termos familiares, o portuense casou-se com a sua companheira vitalícia Maria Isabel Brandão de Meneses de Almeida Carvalhais no dia 4 de dezembro de 1940, gerando com ela quatro filhos e dando asas a uma família que se ampliaria em número e muito com sucessivos netos e bisnetos.
Catorze anos depois de se afastar da sétima arte, regressa em força com O Pintor e a Cidade (1956), filmado a cores. Esta inovação só lhe foi possibilitada com uma formação nos estúdios da impressora gráfica Agfa-Gevaert AG, da Alemanha do Leste. Esta curta faz um contraste entre o retrato visual feito pelo cineasta e o pictórico efetuado pelo pintor António Cruz. Na década de 60, produziu a segunda docuficção (cruzamento de uma narrativa imaginada com uma abordagem descritiva visual) nacional, sendo esta O Acto da Primavera (1963). Esse estilo documentalista passou a ser relacionado com o conceito de antropologia visual cinematográfica, estudando o ser humano e o seu relacionamento com o espaço geográfico e cénico, tanto individual como coletivamente. Vários outros realizadores portugueses inspiraram-se nos aspetos trabalhos tanto por este realizador como pelo seu contemporâneo António Campos, tais como Pedro Costa ou João César Monteiro. Esta longa-metragem funciona como processo etnógrafo (de recolha de dados para o estudo do ser humano) de uma celebração rústica da Paixão de Cristo, na aldeia da Curalha, em Chaves. No ano seguinte, surgiu A Caça, uma curta essencialmente de ficção e que se baseia numa notícia relativamente a um par de amigos e à caça e que cruza referências subtis à mitologia grega. Duas das grandes particularidades do estilo de Manoel são desde já reveladas, sendo estas a construção da narrativa a partir dos aspetos cinematográficos e não tanto com base no texto e na envolvência de gente anciã para um melhor retrato da realidade estudada em pleno ecrã.
Porém, toda esta audácia criativa não o livrou de problemas com a PIDE, sendo encarcerado durante dez dias nos seus calabouços. No arranque dos anos setenta, surge um novo projeto, este que dá um pontapé a toda a inconsistência que havia assolado a carreira do cineasta. O Passado e o Presente (1971) é mais uma longa-metragem que é consolidada por reflexões de amigos literatos e de convicções asseveradas por conhecidos comentadores de então. Militando na ficção, conta a história de um triângulo amoroso fortemente marcado pelas diferenças de estatuto social detidas pelas partes envolvidas, no qual se envolve uma personagem misteriosa denominada Maldevivre. A temática dos amores frustrados não ficaria isolada na obra do realizador, conhecendo paralelo no que seria conhecido como uma tetralogia, à qual se juntam Benilde ou a Virgem Mãe (1975), Amor de Perdição (1979) e Francisca (1981). Denote-se desde já uma tendência para a adaptação literária de autores nacionais, tais como Camilo Castelo Branco e a sua amiga de longa data Agustina Bessa-Luís. Todos estes filmes tornaram-se ligadas a uma fase de bastante produtividade do cineasta, nos quais se incutiu uma forte experimentação de técnicas visuais e cinematográficas, especialmente no que toca a expor a narrativa a partir do simbolismo dos espaços e da linguagem não padronizada. Aliás, Manoel privilegiou uma forte toada dramática no seu repertório, submetendo o cinema aos princípios elementares do teatro e às suas origens temáticas trágicas. Aqui, liga-se também o discurso visual e linguístico fluídos, sem dar azo a momentos maçudos de argumentação ou a pesados e morosos diálogos e monólogos. Apesar de uma serenidade que se preza (até na sua recorrência à casa), ressalva-se o ar e o espaço que por si reza.
Numa outra fase bastante profícua do portuense, surgiram alguns outros trabalhos que ficaram na retina do mais apaixonado cinéfilo. No prosseguimento de uma espécie de teatro falado, seguiu-se O Sapato de Cetim (1985), com quase sete horas de duração. Este, adaptação da obra homónima do francês Paul Claudel, disserta com imponência sobre o cristianismo reivindicado pelo realizador. Os Canibais (1988) transporta lirismo nos seus diálogos e monólogos, realizado ao estilo de uma ópera que se baseia nos criados do compositor João Paes e do autor Álvaro do Carvalhal, este dedicado ao género da ficção de terror. A palavra transcende-se e ganha um novo elã na dinâmica que trespassa no filme, indo da frieza de uma conexão para a pujança de uma canção. A Divina Comédia (1991) arrefece a influência dramática no seu cinema e cruza a iconografia religiosa com as personagens envolvidas na narrativa. A partir deste e de Vale Abraão (1993, adaptado de Agustina Bessa-Luís), os filmes do realizador tornam-se gradualmente mais curtos e com menos extensibilidade, tentando trazer o público para abordagens mais apelativas e tentando também ele saborear a nostalgia das suas primeiras curtas. De referir que Vale Abraão foi a proposta portuguesa para ser nomeado para a categoria de Melhor Filme Estrangeiro dos Óscares de 1993, não logrando tal efeito. Para além disso, trata-se de uma adaptação à magnum opus do francês Gustave Flaubert Madame Bovary, exprimindo uma análise introspetiva e realista das personagens e dos seus arredores. Tudo isto adaptado à realidade transmontana.
Em 1982, o portuense rodou um documentário autobiográfico, no qual desvendou parte do seu memorial íntimo e conceptual. Visita ou Memórias e Confissões foi o título de um dissecar de um histórico já vasto e vivido do realizador, que contava já com 73 anos. O cenário é a casa onde viveu desde 1940, na zona da Foz, e só foi exibido após a sua morte. Todo o recato foi a nota dominante daí em diante, continuando a criar com prazer e devoção aquilo que mais lhe latejava o eu criativo. Para lhes dar corpo e figura, contou com diversos atores de nomeada, tais como os nacionais Luís Miguel Cintra, Leonor Silveira, Miguel Guilherme ou Glória de Matos; e os internacionais John Malkovich, Catherine Deneuve, Marcello Mastroianni (dirigindo o último filme deste, Viagem ao Princípio do Mundo, de 1997) ou Lima Duarte. O seu neto Ricardo Trêpa foi também presença regular nos seus elencos, entrando inclusive no último trabalho do seu avô em Velhos do Restelo (2014), onde se cruzam as figuras de Don Quixote, Luís de Camões, Camilo Castelo Branco e Teixeira Pascoaes.
Manoel de Oliveira partiu aos 106 anos no dia 2 de abril de 2015, sendo vitimado por uma paragem cardíaca. Tratou-se do único realizador que acompanhou a transição do cinema mudo e a preto e branco para o falado e a cor até à segunda década do século XXI. Embora pese um extenso currículo, “O Mestre” deixou ainda algumas ideias por adquirirem formatura na sétima arte, tais como a longa-metragem A Igreja do Diabo, que contaria com os destacados brasileiros Fernanda Montenegro e Lima Duarte, a adaptação ao livro de Agustina Bessa-Luís A Ronda da Noite (2006) e um trabalho sobre as mulheres e o seu papel em época de vindimas. Do seu trabalho, nunca se denotou falta de fé, sendo católico por crença e convicção e dando à dúvida uma plataforma para brilhar na sua questão existencial e filosófica. As referências bíblicas e mitológicas transpostas a isso deram consistência, valorizando os ideais e as figuras no cruzamento com as suas próprias idealizações. Para além da profundidade temática assumida, destaca-se a narrativa visual trabalhada e plenamente fluída na abordagem de cada filme. Contudo, não se perde o nexo que vincula todos os seus filmes uns aos outros, ligando-se pela magia que é produzir cinema. O cinema no seu estado puro e visual, estimulando os restantes sentidos através desses retratos narrativos e puros na veiculação das suas ideias. O centenário engrossou-lhe o imaginário e a vontade de fazer mais e melhor, exemplificando o valor da experiência e o esplendor de uma criativa existência.
“O cinema só trata daquilo que existe, não daquilo que poderia existir. Mesmo quando mostra fantasia, o cinema agarra-se a coisas concretas. O realizador não é criador, é criatura.”
Manoel de Oliveira sobre o cinema.