Maria Reis conjura o seu pop sob vulnerabilidade orquestral na Culturgest

por João Rosa,    16 Fevereiro, 2020
Maria Reis conjura o seu pop sob vulnerabilidade orquestral na Culturgest
Maria Reis. Fotografia de Vera Marmelo
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Ainda não soavam as nove badaladas da vizinha Igreja de São João de Deus, na Praça de Londres, quando um vasto público já ocupava tanto o exterior como o átrio da Culturgest. Poucos eram estranhos em si; e muitos eram decerto caras conhecidas até dos menos ávidos seguidores da actualidade da música nacional. Com a habitual solenidade do clássico auditório rapidamente conquistada pela torrente de público – que praticamente o encheu até ao limite –  a antecipação pela entrada em palco de Maria Reis era palpável de forma bem diferente aos concertos de músicos internacionais que vão pautando o panorama em palcos semelhantes: distante de qualquer dúvida ou frieza, imperavam os ternurentos sorrisos das pequenas salas onde vemos os nossos amigos singrar. Salas que Maria conquistou vezes e vezes sem conta num currículo em que imperam papéis principais em projectos como Pega Monstro, os saudosos Passos em Volta ou o importante marco cultural que a Cafetra continua a representar. E, apesar de ser o mais recente lançamento a solo da artista, Chove na Sala, Água nos Olhos, a jóia da coroa que motiva as honras da noite, é com Sensação, penúltima faixa de Casa de Cima, que entra em palco.

A grande surpresa do espectáculo não tardou a ser revelada: ainda semi-encobertos pela translúcida cortina, do lado direito do palco está um improvável quinteto de cordas: Ana Ramos, Gergana Ribeiro, Sofia Gomes e Luís Azevedo, encabeçados no contrabaixo por António Quintino, iniciam a noite entoando uma nova roupagem orquestral para o tema que, em álbum, vive despido na guitarra de Maria e na bateria de Júlia. Livre de guitarra em braços, a voz de Maria soa cristalina sem os ecos, reverberações ou distorções tão patentes no catálogo dream punk do duo. Segue-se semelhante tratamento a Fado da Estrela d’Ouro, que brilha resplandecente por entre pulsar de cordas em percussão. São duas escolhas certeiras para a introdução orquestral – temas que se rendem melhor às mistas composições pop de Chove na Sala e à calma, quase atmosférica, interpretação sob os graciosos novos arranjos.

Maria Reis – Fotografia de Vera Marmelo

A energia da noite não tarda a mudar, no entanto: Resquício vê a artista a empunhar finalmente a guitarra e a tímida tez inicial ao dialogar com o público é substituída por garra punk comunicativa, incentivada pela calorosa plateia. Com a instrumentação mais clássica suspensa, é acompanhada por João Portalegre na bateria e por Simão Simões no baixo naquele que é o verdadeiro arranque rock do espectáculo – registo que se mantém em Insensível, faixa que abre o seu primeiro EP em nome próprio, de 2017, com igualmente notáveis diferenças de arranjo.

Apesar da troca de formato, é um gosto acrescido ouvir as composições de Maria Reis com grandioso acompanhamento sinfónico, e Preguicite marca o regresso do quinteto, que, desta feita, ganha um novo elemento – Diogo Duque; mantendo-se para a interpretação das músicas seguintes (Automático, Picada de Vespa, Soror Mariana, Um Ai, Lars Von Trier), preenchendo a textura sonora com o seu fliscorne. O formato mantém-se semelhante ao longo destes temas: oscilando entre a ocasional distorção acompanhada de bateria ou a gentileza melodramática que refresca o lançamento que considerámos um dos melhores do ano passado. “Malta, a seguir vamos todos beber um copo, certo?” é frase recebida pelo público com óbvia naturalidade de amigo – claro que sim. A mistura de som da faceta mais rock acaba por sair prejudicada, com volume elevado face aos restantes instrumentos. A partilha de arranjos entre ambos os lados do palco não é simétrica – fazendo a voz de Maria acompanhar-se habitualmente apenas pelo duo baixo/bateria ou pelos seis elementos mais clássicos em cada um dos temas ao vivo – excepção feita para o apoteótico “final” com Odeio-te, tocada em sentida versão prolongada por ambos os lados. A emblemática faixa marca um curto intervalo ao jeito de encore, pautado por efusivo aplauso da plateia – que se levanta para ovação em pé. A banda abandona o palco e resta Maria, visivelmente emocionada com a calorosa reacção do público e empunhando solitária a guitarra em palco. És Tudo o Que Eu Queria e Fado d’Água Fria, faixas mais intimistas de Alfarroba, álbum que acabou na altura por marcar a maior viragem estilística da então energia punk das Pega, são tocadas em registo emotivo, finalizando o espectáculo em balanço tão nostálgico quanto positivo.

Maria Reis – Fotografia de Vera Marmelo

Se por um lado a incrível surpresa dos arranjos para cordas e sopros representaram uma actualização refrescante ao som das composições de Maria Reis – ao nível daquilo que as suas raízes, sedimentadas no folclore tradicional português, mereciam, a aproximação desta faceta ao lado mais percursivo nem sempre recebeu nota máxima: exemplo de uma das faixas mais interessantes e enérgicas do curta-duração: Um Ai, cuja interpretação em estúdio é repleta de elementos de percussão em verdadeiro rodopio de baile de aldeia, é inexplicavelmente tocado ao vivo sem bateria ou qualquer outra batida, perdendo parte da sua força. É praticamente das únicas observações, no entanto, que podem ser feitas a um espectáculo com notável preparação (especialmente quando consideramos que Chove na Sala, Água nos Olhos tem apenas 19 minutos e que não seria provável voltarmos a ouvir Pega Monstro de outra forma por agora).

Maria Reis – Fotografia de Vera Marmelo

Ao cair do pano e acalmar dos aplausos, poucos são aqueles que abandonam o edifício; decididos a esperar pela amiga para partilhar o prometido copo. Porque mais do que um concerto habitual numa sala emblemática com extenso planeamento técnico, esta actuação de Maria Reis acaba por não ser menos que uma séria consagração tanto no universo musical nacional como na vida cultural da cidade. Maria representa, de certa forma, um sucesso indomado pelas garras mercantilistas que abarcam grande parte do panorama musical; um talento em bruto que maturou, ao longo de inúmeras influências e projectos, numa aperfeiçoada destreza para composições únicas com um estilo muito próprio demarcadamente sem desculpas. Não seria então de admirar que mais do que amigos, conhecidos ou apreciadores do EP de Maria, a sala da Culturgest estivesse cheia, sim, de admiradores do seu percurso em busca de lhe conferir a merecida homenagem.

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