Marques da Silva, o mentor de São Bento e de Serralves
José Marques da Silva é um dos nomes mais relevantes da arquitetura portuguesa. Os seus contributos são marcados e notórios na cidade do Porto, onde nasceu, cresceu, estudou, e se fez homem de trabalhos e de projetos. O seu contacto com o exterior revelou-se crucial para a construção e maturação de uma personalidade criativa única e personalizada. Foi com uma abordagem diferente que conferiu ao Porto uma série de edifícios marcantes na sua história e demarcação identitária, para além de se ter debruçado em outras causas pelo país. No âmago, o retrato de uma figura que se foi construindo, à proporção de uma das suas obras, e que se solidificou como um dos marcos assinaláveis da cidade e do país.
A 18 de outubro de 1869, nascia José Marques da Silva, na Rua de Costa Cabral, situada na cidade do Porto. Filho de um marmorista, desde cedo pôde privar com a feitura artística, e sentiu-se seduzido o suficiente para dar aos seus estudos esse cariz específico. A formação decorreu no lugar que o viu nascer e crescer, em específico na Academia Portuense de Belas-Artes. Como professores, teve nomes como o escultor Soares dos Reis, o arquiteto José Sardinha, e o pintor João Marques de Oliveira. Perto de completar 30 anos de idade, viajou para Paris, núcleo de grande produção, difusão, e educação artística, onde ingressou na École Nationale et Spéciale des Beaux-Arts, e onde se tornou num arquiteto diplomado pelo governo francês, no ano de 1896.
Este período em Paris permitiu-lhe desenvolver uma série de projetos académicos, que seriam transportados para vários desenhos arquitetónicos a partir de um atelier artístico muito conotado à data, com a orientação do francês Victor Laloux. Este mesmo atelier preenchia-se de vultos emergentes, tais como o futuro orientador do espaço Charles Lemaresquier; o português Miguel Ventura Terra (com quem convivia então, para além do poeta António Nobre e o escultor António Teixeira Lopes), e Charles Butler, o primeiro norte-americano a sair diplomado de lá. Marques da Silva levou consigo importantes bases clássicas, onde assentariam as novidades ao nível da composição funcional, ajustadas às mecânicas da vida quotidiana. A decoração seria, também, abordada como um elemento imprescindível na personalização e caraterização dos edifícios construídos, e bebendo muito da gama de alunos cosmopolitas e, por isso, com algo diferente e identitário a apresentar.
No regresso a Portugal, logo depois de ter terminado a sua graduação, teve diversos projetos profissionais em mãos, e, por conseguinte, vários prémios internacionais em exposições de nomeada no panorama desta arte. Assim, recebeu a medalha de prata na Exposição Universal de Paris (1900), e a de ouro na Exposição do Rio de Janeiro (1908). Nesse mesmo ano, foi condecorado com o Grau Oficial da Ordem de S. Tiago do Mérito Científico Literário e Artístico, pronunciando-se com uma série de obras justificativas de todo este manancial de honras. Apesar disso, nem tudo foram rosas, pois foi custoso o processo de adaptação às novas formas de se idealizar e realizar arquitetura. O próprio programa que aprendeu em França não se adequava aos densos e mecânicos processos industriais. Encarando uma sociedade em crescente mutação, foi difícil conseguir conciliar as suas diretrizes criativas com os desejos de renovação e de simbolismo das novas tendências sociais, com tons muito burgueses.
Não obstante, deu uma resposta formalizada e disciplinada, em pleno compromisso com os desejos dos diversos agentes da urbe, embora nunca tenha abdicado das suas instruções. Assim, destacam-se a Estação de São Bento (1896), o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular (1904), na rotunda da Boavista, o Teatro Nacional de São João (1910), o Liceu Alexandre Herculano (1914), a Casa da Irmandade da Lapa (1910-1915), o Liceu Rodrigues de Freitas (1919), e a Casa de Serralves (1924), tudo isto na cidade do Porto. Fora desta, o seu cunho também se fez sentir em Guimarães, onde arquitetou a sede da Sociedade Martins Sarmento (1903-08), o Mercado Municipal (1927-47), e o Santuário da Penha (1930-47), entre outras obras em Braga e em Barcelos. Antes, havia estado envolvido na conclusão das obras do lisboeta Mosteiro dos Jerónimos; para além de também ter sido crucial na revitalização do Palácio de São Bento, da Sé de Lisboa, e no restauro da Escola de Belas-Artes, tudo isto também em Lisboa, colaborando com o arquiteto Pedro d’Ávila.
Como caraterísticas marcantes do seu trabalho, saltam os predicados de uma corrente que se destacava no final do século XIX, e que se confirmou no arranque do século XX. Assim, muito do que é o Porto vive à luz da Art Nouveau, no contexto da Belle Époque, fase com raízes gaulesas de intensa atividade e novidade artística. O seu derradeiro projeto em França foi, precisamente, a projeção de uma gare central, que serviria de instrumental e futura base para o projeto de São Bento. Como influência, também possuiu um rasgo da Escola de Fontainebleau, existente e canal presente de manifestação do Renascimento em França, para além de receber alguma textura maneirista. A sua carreira conheceu várias viagens à cidade onde tanto se inspirou para descrever um novo rosto para a cidade do Porto, nunca se desvinculando das diversas novidades que por lá surgiam; para além de se deslocar à Alemanha e à Bélgica. É nesse período que também se sente atraído pela Art Déco, que vai de encontro aos exigentes requisitos das famílias abastadas e aristocratas que o requisitam, para desenvolver residências e palacetes. Conferir-lhes caráter a partir da decoração efetivada seria o pleno complemento a influências formais e racionalistas, atendendo à progressividade das próprias estruturas e classes sociais.
No que toca às suas obras em concreto, a estação de São Bento adveio da necessidade de possuir uma moderna e majestosa porta de (des)embarque entre pessoas e produtos, acompanhando a evolução dos transportes e comunicações nos países mais centrais. Assim, foi adaptado o antigo Convento de São Bento de Avé Maria para o efeito, no final da subida da rua Mouzinho da Silveira. Funcionalmente, as entradas laterais serviriam para gerir as mercadorias que chegavam de fora. Artisticamente, assentaria no ferro como material constitutivo, e destacar-se-ia, nela, um amplo átrio para uma receção ampla e amistosa, adornada com os azulejos de Jorge Colaço, que, neles, representou a história da cidade e do país. A obra atravessou um longo percurso burocrático, mas acabou por ganhar tessitura após o projeto se ajustar ao potencial de crescimento da própria cidade. Por acréscimo, estaria responsável pela coordenação e implementação dos projetos da Avenida dos Aliados – onde também desenhou alguns edifícios – assumindo, como arquiteto municipal, um contributo determinante na criação de um novo centro de ações e emoções na cidade Invicta.
A importância das fachadas também se denotou no próprio Teatro Nacional de São João, composta por uma frontaria imponente e importante, que serviria de renovação ao próprio edifício, fustigado por um incêndio antes da intervenção do arquiteto. Marques da Silva acompanhou a transição da monarquia até à primeira república, nunca se privando de dar forma e matéria aos seus projetos. A natureza também conheceu um especial contributo, em especial em Serralves, onde o edifício e os jardins que o circundam foram sendo reformulados, adaptados às ideias diferentes e complementares que entravam a partir do responsável pela própria construção e disposição desses jardins, o gaulês Jacques Gréber. Estas remodelações só assumiriam, como fim, o ano de 1940, fundamentando-se com a necessidade de acrescentar racionalidade e funcionalidade aos próprios resultados finais das suas idealizações, para além das diversas fontes de colaboração em compatriotas de Gréber, como o decorador Jacques Émile Ruhlmann. Subjacentes estavam, sobretudo, as atividades a serem desempenhadas no mesmo, e as diferentes movimentações a tomarem lugar nos tais espaços. Assim, o edifício assumiu predicados modernos, tanto no seu exterior plácido e equilibrado, como num interior funcional e limpo. Isso refletiu-se nas casas que foi arquitetando e erigindo, nunca esquecendo a sua eventualidade prática.
Como docente, começou no Instituto Industrial e Comercial do Porto, em 1900, lecionando Desenho e Modelação, relacionando-se como arquiteto profissional a partir das funções que foi desempenhando na Associação Comercial do Porto. Seis anos depois, tornou-se professor de arquitetura na Academia Portuense de Belas-Artes, onde havia estudado. Futuramente, seria diretor da mesma, eventualmente designada Escola de Belas-Artes do Porto (1913-14 e 1918-39), e da Escola de Arte Aplicada Soares dos Reis (1914-30), tendo participado nas diferentes reformas que tomaram lugar na realocação e na reorganização do próprio caminho do ensino artístico. No exercício das suas funções, apresentou o desenho como a principal ferramenta prática, e como método de transmissão de estruturas de planificação e atuação nos diversos projetos, capacitando-as de se adaptar às necessidades existentes e emergentes das partes envolvidas. Tornou-se, dessa forma, mestre de uma quantidade de arquitetos, tais como Rogério de Azevedo e Arménio Losa, que foram crescendo e operacionalizando aquilo que aprendiam na segunda metade do século XX, período de maior liberalização.
A simbiose do seu pendor criativo e formativo levou a que se tornasse numa referência estratégica e artística na comunidade arquitetónica portuense, estando esta munida do suporte necessário para intervencioná-la e renová-la, ajustando-se às tais necessidades contextuais. De muito valeu, também, o que realizou no Conselho Superior da Sociedade de Belas-Artes, e na Sociedade dos Arquitetos do Norte. Marques da Silva viria a falecer no dia 6 de junho de 1947, com 77 anos, na supramencionada residência, e foi sepultado no Cemitério da Lapa, num dos muitos jazigos da sua autoria. Por concluir, deixou um projeto de uma nova Igreja de Cedofeita, que não foi levado a cabo não só pelo seu falecimento, mas pelos vários constrangimentos que encarou nos momentos que teve para ganhar forma. No Campo Alegre, zona conotada da Invicta, conta-se com uma artéria urbana com o seu nome, sendo uma das muitas lembranças e insígnias que relembra a importância e o cunho deste nome.
Toda esta bagagem académica e prática foi agregada na Fundação Instituto Arquiteto José Marques da Silva, instituída em 1996, e tornada fundação em 2009, que, além de ter diversos desenhos da sua autoria, compila grande parte das referências da sua vida e obra, situando-se o espaço na Praça Marquês de Pombal, onde havia vivido e trabalhado, na cidade portuense. A fundação tornou-se instrumental para legar aos diversos sucessores bases e premissas sobre as novas tendências arquitetónicas, sem lesar as passadas; e funciona como um importante pólo de promoção e de fomento do estudo e do trabalho arquitetónicos. Responsável pela orgânica e dinâmica do edifício foi a Universidade do Porto, que recebeu todo o espólio do arquiteto a partir dos seus descendentes; e inclui os acervos dos também arquitetos David Moreira da Silva, e Maria José Marques da Silva Martins. A sua atividade continua bastante requisitada e preparada para conservar, valorizar, tratar, investigar, e divulgar diversas unidades de informação relacionadas com fundos públicos e privados de arquitetos, e outros ligados ao urbanismo regional e nacional.
José Marques da Silva foi um dos principais responsáveis pela construção, elaboração, e modelação de uma face da cidade do Porto, ajustada às novas tendências artísticas do exterior. Não obstante, nunca se esqueceu da identidade da cidade onde cresceu e que tão bem conheceu, adequando o seu trabalho às necessidades existentes da própria urbe. Para além do que fez, importou aquilo que legou aos demais arquitetos portuenses e nacionais, nos quais se incluem Eduardo Souto de Moura e Álvaro Siza Vieira. O savoir faire foi pouco naquilo que foi a efetiva influência deixada e contagiada pelo arquiteto aos seus sucessores, avivando-lhes a alma e a razão para novas abordagens, novos métodos, novas formas e práticas de se fazer arquitetura, pensando de forma personalizada e atuando de forma vincada.
Fotografia em destaque: Casa de Serralves (1931-44)