“Maus”, de Art Spiegelman: uma história sobre terror e esperança (ou falta dela)
Esta novela gráfica de Art Spiegelman, a primeira galardoada com o Prémio Pulitzer, é considerada por muitos como a melhor e mais importante obra do género. Spiegelman criou “Maus” com uma motivação fundamentalmente terapêutica e pôde desta forma exorcizar os demónios que a sua família judaica carregou em consequência da Segunda Guerra Mundial. Filho de sobreviventes de Auschwitz, e nascido em 1948 no pós-guerra, sentiu desde cedo a sombra do Holocausto nas suas relações familiares. O impacto na sua saúde mental manifestou-se num esgotamento nervoso em 1968. Pouco tempo depois deste episódio, a sua mãe suicida-se.
No início dos anos 70, e já considerado um autor de culto do segmento dos “comics”, começa a desenvolver esta obra profundamente catártica. Em “Maus” (Ou Rato em alemão) o autor conceptualiza uma separação antropomórfica que simbolicamente representa a segregação racial da ideologia Nazi. Desta forma define: os Judeus como Ratos; os Nazis/Alemães como Gatos; os Polacos como Porcos; os Americanos como Cães.
“Maus” foi inicialmente pensado como uma forma de documentar as memórias do seu pai, Vladek Spiegelman. Quis eternizar as experiências da guerra e da passagem por Auschwitz da mãe Anja, do irmão Richieu, dos avós ou restante família e amigos. A narrativa vai-se tornando um acto de desconstrução da própria memória de Art em relação ao Holocausto, à sua família e a si mesmo. Confronta-se diversas vezes com as falhas de carácter do pai, sentindo-se na obrigação de as destacar em vez de as ocultar. Desta forma apresenta o pai como uma pessoa “real” para além do símbolo de vítima do Nazismo. Não hesita em dar ênfase a situações que colocam Vladek sob as caracterizações antissemitas estereotipadas pelos próprios Nazis, tais como a avareza e a ganância. Não hesita em contar a história como deve ser contada e aí reside boa parte do mérito deste incrível testemunho ilustrado por Spiegelman.
Existe uma constante crueza nos relatos de Vladek, mesmo que filtrada pela sua personalidade perseverante. O que para mim fica subentendido, é a existência de um sentimento não assumido de culpa de sobrevivente, que carrega para a vida toda. Por sua vez, a relação de Art com os pais é bastante condicionada emocionalmente, principalmente pelas memórias que tinham de Richeau e que se infundem na maneira como o tratam.
Destaco a forma como a estética escolhida por Spiegelman, o preto e branco, combina perfeitamente com o peso emocional da narrativa e proporciona uma leitura das memórias de Vladek com a “atmosfera” adequada. Apesar de serem meios diferentes, esta temática e linguagem gráfica pode invocar alguma da imagética do filme “A Lista de Schindler” na mente do leitor (filme de Steven Spielberg que retrata o Holocausto também a preto e branco). Enunciando outra similaridade mais ou menos evidente: ambas as obras procedem à humanização das vítimas da barbárie sem as idealizar, retratando-as como pessoas e não como pobres coitados. Esta é uma história sobre o terror e esperança (ou falta dela) de uma guerra, os diferentes níveis de perda e como um indivíduo e o próprio núcleo familiar lidam com ela.
Destaco também uma pequena curiosidade final, que talvez não tenha passado despercebida: houve uma polémica mediática sobre “Maus” no início de 2022. Isto ficou-se a dever às notícias da sua proibição no programa curricular por parte de uma escola no Tennessee, E.U.A. Uma das premissas centrais para a sua remoção terá sido a inclusão de palavrões no texto. Isto leva à seguinte reflexão: será válido banir, por questões de linguagem, uma obra que se tornou um marcante complemento à aprendizagem, à reflexão e à construção da memória colectiva sobre um período histórico de desumanização como o Holocausto?