Medeiros/Lucas: “Havia que pensar o terceiro disco como um vértice de um triângulo”
Na hora de fecho de um café barulhento, algures em Campo de Ourique, estivemos à conversa com Pedro Lucas, um dos fundadores do projecto Medeiros/Lucas. Estando na semana em que a banda se preparava para lançar o novo álbum, Sol de Março, a conversa incidiu maioritariamente sobre o mesmo, assim como sobre o percurso que têm vindo a fazer e o processo criativo por detrás da sua música.
O que é que surgiu primeiro, o título do álbum [Sol de Março] ou a data de lançamento?
Pensava que me ias perguntar se era o ovo ou a galinha [risos]. Assim é mais fácil. Havia um time frame mais ou menos pensado para o disco seguinte – se fosse para acontecer. A ideia – não propriamente o título – mas a ideia, o conceito do disco surge antes disso tudo. O “sol de Março” é uma coisa que aparece depois a meio do processo, vem naquele poema que depois dá nome a uma das músicas do disco.
Esse conceito foi sendo desenvolvido; houve alguma inspiração especial para o mesmo? Como é que se desenvolveu?
De certa forma, é circunstancial; outra coisa, é um processo um bocado dialéctico, com o trabalho que nós tínhamos feito antes. O primeiro disco que nós fizemos – isto nunca foi pensado, esta trilogia não foi pensada desde o início, de todo – mas pronto, o primeiro disco [Mar Aberto] era uma ideia que o Carlos [Medeiros] já trazia há muito tempo, que era fazer um disco sobre um Dom Quixote marinheiro; só aí dava logo para explorar essa ideia, e nós explorámos o imaginário que nos apeteceu explorar na altura, que era uma coisa super romântica: o gajo que vai e que se deixa ir, perder-se no mar e nessas viagens.
Quando convidámos o João Pedro Porto [letrista] para trabalhar connosco no segundo disco, nessas primeiras abordagens e discussões um bocadinho teóricas – antes de haver música ou poemas – surge esse título da Terra do Corpo, e acho que tem a ver com ele querer criar uma antítese, “onde este era Mar Aberto, agora vimos para terra”. Quando estamos a lançar o disco, é o próprio João Pedro Porto que diz “eu acho que agora faz sentido – o primeiro disco vosso falava de emoção, agora estamos a falar sobre o corpo, isto está a berrar mesmo para irmos falar sobre a razão”. Somos todos mais ou menos ateus e ninguém quer abordar a espiritualidade, pelo menos para já [risos]. E assim foi, cada disco vai sendo quase uma consequência do anterior.
Mas, mal o João Pedro Porto diz “acho que temos de fazer um disco sobre razão”, na minha cabeça faz logo sentido que seja uma trilogia, que os três discos estejam interligados de alguma forma. Porque eles já estavam ligados de alguma forma – nem que fosse pela reacção dialéctica que eu estava a explicar. Portanto, havia que pensar o terceiro disco como… já num pensamento integrado de três vértices de um triângulo.
Então parece que há aí uma espécie de fio condutor, mas que surgiu assim por acaso.
Organicamente, não é por acaso. Acho que esse processo dialéctico é mais orgânico, não é por acaso; uma coisa puxa a outra.
Este álbum tem uma personagem, talvez, central: a Elena Poena. Porque é que a criaram? Porque é que foi escolhida uma personagem feminina?
[risos] Por acaso ainda ninguém tinha feito essa pergunta, mas estava a ver que qualquer dia alguém ia perguntar porque é que é uma mulher e não um homem. Pá, é uma mulher porque apeteceu, não houve qualquer razão; talvez porque o nosso universo real é muito masculino e apetece circundar-nos desse lado feminino, que acho que faz um bocadinho de falta, às vezes.
A personagem surge através do ‘Poena’: eu e o João Pedro Porto estamos num café aqui em Lisboa, a conversar, e acho que ficámos com a ideia de criar uma personagem qualquer. Na altura ainda estávamos a discutir onde é que iríamos, conceptualmente, e estamos à procura de um nome para essa personagem – uma coisa um bocadinho trabalho de copywriter, um brainstorming – e o João lembra-se da palavra ‘pena’, que tem muito a ver com sentença. Eu tinha acabado de ler O Mito de Sísifo, do Camus, que é um livro que o João já tinha lido há muito tempo, e então a personagem seria baseada nesse Sísifo. Num Google rápido, descobrimos que ‘poena’ é uma forma etimológica antiga de ‘pena’. Elena rimava com Poena [risos]. E ficou Elena Poena.
Achei curioso porque os primeiros singles foram o “Podre Poder” e a “Elena Poena”, e então parece que houve…
Ah, aliterações, sim! Especialmente o “Podre Poder”, que toda a letra está construída numa aliteração, aquilo foi uma brincadeira muito rít… e a música também saiu um bocadinho mais rítmica, que aquilo puxava, como se fosse uma lenga-lenga [estala dedos ritmicamente].
Gosto bastante dessa canção. Como é que são construídas as canções de um álbum vosso? Não só neste, mas no geral.
Para responder à tua pergunta assim tipo cabeçalho, 95% vem das letras. Os poemas existem, e nós construímos a música a partir desses poemas. Isso é o processo normal. Mais especificamente, metade do repertório do primeiro disco são coisas que o Carlos Medeiros já cantava nos anos 80, mas que nunca tinha gravado, simplesmente, e que nós decidimos gravar. A outra metade, fomos para a biblioteca e para a prateleira de livros dele à procura de poemas que tivessem a ver com esse tal imaginário do Dom Quixote marinheiro e não sei quê, e achámos aqueles poemas e musicámos aquilo na altura.
A partir daí, entrou o João Pedro Porto. O processo começa sempre com uma discussão um bocadinho proto-filosófica sobre o que vamos fazer – sem pretensões, uma coisa até muito estética, muito plástica, mas com ideias – e dessa matriz, desse universo conceptual que nós criamos, o João Pedro depois vai escrever vários poemas que me vai enviando, e eu vou musicando – às vezes com o Carlos ao lado, às vezes sozinho.
E onde é que entram aí o Augusto [Macedo] e o Ian [Carlo Mendoza]?
Neste disco, principalmente, que é o primeiro disco que eu faço a viver a Portugal – que eu vivi na Dinamarca, este já foi todo feito cá – o Augusto e o Ian entram numa fase em que eu basicamente pego no poema, crio uma melodia e um ritmo assim em forma de esquisso, levo aquilo para a sala de ensaios, mostro as gravações que às vezes faço no telemóvel ou no computador, digo “olha, tenho esta ideia” e cada um vai contribuindo com a sua parte. Este disco deu para fazer já muito isso, eles participaram bastante mais na execução dos arranjos.
É possível se calhar integrarem, mesmo como parte da banda…
Eles são parte da banda! O Augusto gravou como convidado no primeiro disco e a partir daí gravou sempre. Sendo honesto, sem o som de bateria e percussão de Medeiros/Lucas, o projecto não seria o que é hoje em dia. Ele [Ian] é muito idiossincrático na maneira como toca e faz parte disto. E o Augusto… neste disco há linhas de [Fender] Rhodes e apontamentos de baixo – que ele é um baixista incrível – que têm o cunho dele e Medeiros/Lucas é… hoje em dia já só se chama Medeiros/Lucas porque na altura fui eu e ele que nos sentámos a escrever aquelas canções. Quando cheguei ao Ian e aos outros músicos que gravaram foi com uma maquete já praticamente feita; e antes de gravarmos isso já tínhamos tocado, e então ficámos Medeiros/Lucas. Hoje em dia já nem faz sentido, era uma label. Medeiros/Lucas é uma banda de quatro pessoas, hoje em dia.
Como é que surgiram as colaborações deste álbum?
Muito organicamente e muito facilmente. O Rui Souza é um rapaz que eu conheci no Westway LAB, há dois anos, numa residência que fiz lá [em Guimarães], e apesar de não termos feito a residência juntos, tivemos logo uma empatia enorme. Eu fui convidado, no ano passado, para fazer o espectáculo de abertura do Festival Silêncio [Os Velhos Também Querem Viver] e trabalhei com ele; foi ele que escreveu as partes todas de arranjos, é um músico incrível. Já substituiu o Augusto, quando ele não pôde actuar ao vivo. O Gonçalo Santos a mesma coisa, também já substituiu o Ian quando ele não pôde vir.
O João Hasselberg, já me tinham falado 1500 vezes dele, porque ele neste momento está a fazer um mestrado em Copenhaga e temos músicos amigos em comum. Para aí um mês antes de começarmos a gravar, conheci-o por acaso num bar no Cais do Sodré; a conversa correu super bem e decidi convidá-lo – quase sem ouvir o que quer que seja dele; mas as referências eram tão boas que o convidei. O Tine Grgurevic foi um gajo que também conheci no Westway, mas com quem trabalhei lá e com quem tenho uma banda hoje em dia, que são os PHILA. Conheci o Antoine [Gilleron] porque andava à procura de um trompetista para gravar o “Corpo Vazio”, no Terra do Corpo, e alguém mo aconselhou. Falei com ele por email e um dia apareceu-nos lá no estúdio e gravou aquela parte simples, mas a partir daí começou a tocar connosco ao vivo; participou em PHILA, também. Também já faz parte da família, de certa forma.
Foi tudo assim extremamente orgânico, não havia nada pensado… o João Hasselberg foi o único que chegou de novo. Tocámos o “Fado do Salto” num ensaio e aquela linha de contrabaixo dele era feita por um sintetizador, depois ouvimos a gravação e o sintetizador ficava extremamente dissociado do resto do som daquele tema; era muito agressivo, e então foi “pá, ‘bora convidar o João Hasselberg para compor”.
Por falares em sintetizadores, parece que neste álbum há menos presença de componentes electrónicos que nos anteriores.
A ideia foi fazer um disco mais de banda. Temos tido mais concertos e tocamos cada vez mais juntos, portanto fazia sentido. Mas também há uma certa reflexão crítica minha, olhando para trás; sobretudo por termos de transpor os discos para o palco, em que muita da electrónica que está nos discos eu fui limpando. Perde um bocadinho de textura e riqueza, mas o que ganha em dinâmica e em força de banda supera isso. E foi um bocadinho olhar para trás e achar que muitos elementos electrónicos que pus nesses discos são um bocado supérfluos; agora provavelmente não os gravaria.
O que vou dizer é um pouco discutível, mas eu pelo menos considerei este o vosso álbum mais acessível.
Eu acho que sim. Eu tinha pensado fazer o álbum, não diria mais acessível, mas mais directo. As ideias são apresentadas da forma mais directa possível.
Vocês nos anteriores tinham sempre momentos um pouco abrasivos. Não que neste não haja intensidade, como o “Fado do Salto”. Mas, por exemplo, a “Transparência” tem um som muito intenso e pode afastar algumas pessoas que estão à espera de ouvir algo mais calmo; e de repente surge algo muito forte.
Sim, mas isso tem a ver com o próprio conceito do disco. Quando se fala em processos mentais e de razão, há muito uma ideia de depuração, de controlares os teus excessos emocionais, de usares os mecanismos do pensamento para tentares ser o mais calibrado e mais razoável possível. E tu tens temas – como o “Lampejo” – em que a bateria podia explodir, podia ser como o “Navio” do primeiro disco, mas não, fica ali agarrada àquele ritmo, a querer explodir. Para mim, foi quase uma materialização sonora dessa ideia de tentares usar a razão para controlar aquilo que são vontades emocionais ou intuitivas.
O intuito seria ter essa explosão, essa libertação.
Era o que tu farias, era o que te apetecia fazer; às vezes tens vontade de pegar numa cadeira e atirá-la contra a parede, mas consegues racionalizar… às vezes consegues! Às vezes não consegues e sabe bem, de imediato, mas depois arrependes-te e dizes “se calhar podia ter pensado duas vezes e não ter feito aquilo”. Este disco era para representar uma pessoa normal, nessa personagem que é transversal aos três discos, nos quais vai lidando com aspectos diferentes da sua personalidade.
Essa personagem transversal seria então o tal Dom Quixote, não?
Era um Dom Quixote no primeiro disco, ou pelo menos assumia mais esse lado. No segundo disco assumia mais o lado de agente político, de pessoa que vive numa comunidade e passa fome, que se revolta com o que se passa à volta dele, mas ao mesmo tempo sabe que tem de viver numa comunidade com outras pessoas, outros corpos. Há bocado estavas a falar da “Transparência”, que representa melhor esse disco, essa ideia de estares revoltado com o que se passa à tua volta; quase grito de guerra, extremamente intuitivo e quase explosivo. Neste disco não, a pessoa está a tentar controlar-se através da razão e a perceber porque é que reage assim.
Já pensaram no que se poderá seguir para o projecto?
Tenho algumas ideias, mas vamos deixar este disco sair, divertir-nos com ele, apresentá-lo às pessoas; agora toda a gente gosta do ‘brinquedo novo’. A gente está com vontade de tocar as músicas novas – pelo menos eu. Mas sim, tenho ideias, com a mesma banda, com algumas coisas diferentes, fora do esquema do que se passou até agora. Todos os discos foram gravados no mesmo estúdio, masterizados pela mesma pessoa, editados pela mesma label, gravados praticamente com o mesmo núcleo de músicos. Pelo menos o núcleo de músicos vai-se manter, o resto logo se vê. Acho que agora me sinto livre para fazer qualquer coisa completamente díspar.
Para concluir, o que podemos esperar do concerto de apresentação do disco, no Teatro Ibérico?
Como dizia no outro dia o nosso técnico de som, na visita técnica que fizemos ao Teatro Ibérico, o técnico de som de lá perguntava como é que a gente tocava, e eu a tentar… e ele, “epá, é um concerto rock” [risos]. Tu dizes que não e não sei o quê, mas isto é rock, ao vivo é rock. Vai ser em quinteto, uma coisa que já não fazemos há muito tempo, e acho que agora temos um grupo de músicos extremamente sólido. O Rui Souza vai estar connosco, vai ser quase a formação clássica de Fender Rhodes, sintetizadores, baixo, bateria, guitarra e voz. Estava a pensar nos convidados… poderão aparecer, provavelmente só de surpresa. Eu queria uma coisa muito concisa, somos aqueles cinco, vamos tocar sem fogo-de-artifício. O disco não tem muito fogo-de-artifício. Não vamos reinventar a roda em relação ao que está no disco; obviamente que dificilmente tocaremos exactamente igual ao que está lá – alguns temas tocaremos de maneira diferente, até. Vamos passar um bocadinho pelos discos anteriores, vamos tocar este todo na íntegra, e é isso.