MEO Kalorama (dia 3): a catarse dançável dos Arcade Fire e dos Nu Genea
Quando chegamos ao Parque da Bela Vista neste terceiro e último dia de MEO Kalorama, já Selma Uamusse se encontrava a terminar a sua actuação no palco principal, dedicando uma canção a um dos seus (e nossos) ícones: Nina Simone. Mas infelizmente não pudemos assistir a muito mais, por isso deslocamo-nos até ao palco San Miguel.
Lá, estava prestes a apresentar-se o galego Sen Senra, naquela que foi a sua estreia em Portugal. Envergando um conjunto saído dos inícios dos anos 2000, o bonito artista parecia nervoso, permanentemente agarrado à perna esquerda das suas calças que certamente terão ficado com um vinco novo. A verdade é que esse nervosismo se adequava à sua música, uma mistura de indie, bedroom pop e uns travos de hip hop, trazendo um certo charme à sua pequena figura. À medida que ia avançando no concerto e que o ritmo das canções iam aumentando, foi-se colocando mais à vontade. A confiança de canções como “No Quiero Ser Un Cantante” começa a transparecer, quando nos canta “não quero ser um cantor, quero ser algo muito melhor”. Quando pega na guitarra para acompanhar a melodia do seu maior hit, “Ya No Te Hago Falta”, o público das filas da frente acaba por se ligar à sua história de desgosto amoroso. O concerto acabou por nunca descolar totalmente, mas foi agradável começar o dia desta forma despretensiosa.
Uma das maiores surpresas no alinhamento deste MEO Kalorama foi a inserção de Siouxsie, ícone do estilo e do punk mais conhecida com o sufixo “and the Banshees”, referente à banda que liderou até 1996. Entretanto iniciou uma carreira a solo em 2004, mas a sua última actuação ao vivo havia sido em 2013, quando deu dois concertos num festival organizado por Yoko Ono. No ano passado, anunciou uma série de concertos na Europa, entre os quais se incluía esta passagem por Portugal, marcando o seu regresso aos palcos, 10 anos depois da última vez.
No entanto, é como se não tivesse passado tanto tempo. Siouxsie continua mais que à vontade no seu papel de animal de palco, a única diferença é que agora a sua atitude é ligeiramente diferente. No topo dos seus 66 anos e envergando um fato de corpo completo prateado, passa uma imagem daquela tia divertida que anima sempre os eventos de família. Comunicativa e cheia de genica, movia-se agilmente em palco, impelindo-nos a dançar consigo. Em termos de música, revisitou maioritariamente canções dos seus Banshees, oscilando entre canções abertamente punk, como a aguerrida “Land’s End”, e outras mais ponderadas, entre as quais a reluzente “Dear Prudence”, dedicada ao sol que agraciava público e banda. No final, “Into a Swan”, do seu único álbum a solo, revela um instrumental distorcido e sludge, assim como uma letra que parece ainda mais pertinente hoje em dia: “Eu sinto uma força que nunca senti antes”. Siouxsie está de volta.
Ao final da tarde, apanhámos o concerto de Junior Boys no palco Samsung, com vista para o pôr-do-sol do topo de uma das colinas de Lisboa. Sendo nós mais familiares com o ambiente nocturno do álbum Big Black Coat, ficámos surpresos pelo ambiente brando das canções da banda, não tão dançáveis. Esse início morno foi agradável, particularmente pelo contexto, mas pedia mais alguma energia. Um saxofone maroto no final de “Waiting Game” foi uma boa surpresa que adicionou alguma riqueza à canção de electrónica midtempo. Entretanto, uma versão adulterada de “Over It” aumentou o ritmo e, com isso, trouxe nova vida ao concerto, que foi aumentando de ritmo com “Love Is a Fire”, “Parallel Lines” e, por fim, uma “Big Black Coat” tão sedutora e elegante como em estúdio. Acabou por valer a pena ficar para mais.
Uma das principais atracções do dia, tendo em conta a quantidade de t-shirts que vimos por entre o público, era o concerto dos britânicos Foals. Porta-estandartes de um math rock acessível, a banda apresentou-se com a garra que caracteriza os seus espectáculos, apesar de se notar algum cansaço de final de tour de festivais, após um Verão intenso e cheio de concertos. Yannis Philippakis, o idolatrado vocalista, parecia até estar ligeiramente rouco. O alinhamento compôs-se por um pouco de cada fase da banda, se bem que com ligeiramente mais peso para Antidotes, o disco que deu início à trajectória estratosférica de uma daquelas bandas alternativas que encontram fama noutros meios. “My Number”, clássico indie de 2013, certamente ajudou a que isso acontecesse, pela sua acessibilidade e dançabilidade inegáveis. O final demonstrou a faceta mais épica que caracteriza os seus lançamentos mais recentes, com “Inhaler” e “What Went Down” a encher o recinto do Parque da Bela Vista de puro som.
Um dos melhores concertos do festival foi certamente o dos napolitanos Nu Genea. Tudo se alinhou: público e banda encontravam-se em perfeita sintonia e a atmosfera vivida foi de autêntica festa. Já tínhamos visto Nu Genea duas vezes antes, tanto no Sónar Barcelona como em Paredes de Coura, mas não se comparou ao entusiasmo deste concerto. Depois de o octeto nos ter dado as boas-vindas ao seu Bar Mediterraneo — que é o nome do seu segundo disco — os ritmos dos seus maiores hits, “Marechià” e “Tienaté”, espalharam-se pelo público como um vírus, contagiando toda a gente e impedindo-a de parar de dançar. Depois daquilo que parecia ter sido o píncaro, a energia simplesmente continuou a crescer com canções funk e disco infundidas de uma boa dose de italianidade, nomeadamente uma versão estendida de “Je vulesse” sem pausas e de uma mestria musical inacreditável. Saltámos, atirámos as mãos de um lado para o outro, cantámos em uníssono, batemos palmas com a banda… enfim, os Nu Genea tinham-nos na mão. E agora, temo-los todos nos ouvidos.
De recinto cheio ao nível dos Blur no primeiro dia, o concerto dos Arcade Fire colocou-os claramente no top de melhores concertos do festival. O início dançável aplicou um tratamento à la Reflektor às canções, imbuindo de um brilho disco seja “Neighborhood #3 (Power Out)”, “Creature Comfort” ou “Age of Anxiety II (Rabbit Hole)”. Mantendo este ritmo, foi fácil para a banda convidar o público para o seu mundo onde os sentimentos são gigantes e qualquer canção pode salvar-nos, desde que se possa cantar a plenos pulmões. Quase todas as canções deixavam o público a entoar as suas melodias, como se de cânticos de futebol se tratassem. Do mais recente WE, álbum que resgata a inocência e bucolismo do primeiro disco da banda, Funeral, o duo “The Lightning I” e “The Lightning II” cortou o ritmo disco, trocando-o por algo mais orgânico, mas igualmente (ou até mais) extático. Se depender de nós, nunca mais sairão dos alinhamentos de concertos dos Arcade Fire.
Daí, entrámos no segmento da vida suburbana, com a narração de histórias adolescentes e o seu misto de esperança e desespero. “No Cars Go” desabrochou de uma forma que não tínhamos sentido antes, conjugando o escape da sua letra (da ideia de ir para um sítio onde não passam carros) com a catarse do seu instrumental. “Neighborhood #1 (Tunnels)” brinca com a ideia de construir um túnel entre as nossas casas e as dos nossos amigos, enquanto que “The Suburbs” já narra a perda da inocência, num ritmo constante como um passeio de carro pelo bairro e um piano saloon que completa uma das canções mais desoladoras da banda.
Para o final, a bola de espelhos voltou a girar para dar o devido destaque a Régine Chassagne, a adorada co-vocalista da banda, e à sua “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)”, uma das canções definitivas e que expandiu a paleta sonora da banda. Não duvidamos que foi graças a ela que hoje em dia temos “Everything Now”, uma benção vinda do álbum mais odiado, com o qual partilha o mesmo nome. As suas teclas deliciosas não são nada menos que clássicas. Mas ainda assim há algo guardado para o final; a canção que tem sempre a honra de fechar os alinhamentos dos Arcade Fire: “Wake Up”. Se alguém não estivesse acordado até esse momento, os gritos em uníssono de toda a plateia terão tratado de mudar isso. Foi mais um concerto bem sucedido da banda em Portugal, que conseguimos ligar na perfeição a todos os anteriores, como se de diferentes capítulos de uma mesma história se tratassem.
Para algo completamente diferente, o festival alistou Pabllo Vittar, reconhecida drag queen e cantora brasileira. Pabllo apresentou-se com um conjunto de dançarinos num espectáculo que deveu mais às coreografias impressionantes de si e da sua trupe, apesar de ter servido também para demonstrar os seus dotes vocais. Músicas como “AMEIANOITE” ou “Follow Me” demonstram uma faceta mais voltada para o electropop moderno e para a cultura de clubbing. Só foi pena esta última, que conta com a participação de Rina Sawayama na versão de estúdio, ter pecado por uma mistura de som fraca que não destacou o seu refrão estrondoso e ritmo metálico. Ainda conseguimos rebolar ao som de “Sua Cara”, canção de Major Lazer, mas quando chegamos ao característico ritmo brega de “Amor de Que”, decidimos ir espreitar o outro concerto simultâneo.
Como alternativa, os festivaleiros poderiam assistir ao concerto de Young Fathers, conjunto escocês que faz música aguerrida com bases de soul e hip hop. Se esses géneros fossem arrastados por um túnel cheio de cacos de vidro e destroços, o que sairia do outro lado é esta música feita para exorcizar demónios, como uma espécie de gospel distorcido. As suas canções têm muito ritmo e ruído, favorecendo qualquer instrumento que lhes possa adicionar textura — sejam tambores, teclas gorgolejantes, repetições de notas de guitarra alienígenas ou vozes enrouquecidas. Há algo de primal na sua música que nos impele a agitar o corpo, como no caso das vibrantes “Get Up” ou “Rain or Shine”. Outras músicas inclinam-se mais para a pop, como “In My View”, afigurando-se como algo mais familiar aos ouvidos. No final, o poder de toda a performance é impactante.
Tendo resolvido uma boa parte dos problemas que assolaram o festival no ano passado, o MEO Kalorama apresentou uma segunda edição consistente e com muitos concertos de qualidade. À saída do festival, já ficou a promessa de um regresso em 2024, pelo que o fecho da época de festivais de Verão em Lisboa continuará a seu cargo. Da nossa parte, lá estaremos para registar tudo.