MEO Kalorama (dia 3): a noite foi de Raye, a mais poderosa voz do festival
Na última noite do MEO Kalorama, subiu ao palco a voz mais poderosa desta edição do festival; Raye, com a sua personalidade fora-da-caixa e com a mais expansiva caixa torácica a visitar a Bela Vista em vários anos, ofereceu ao público português um concerto coeso, emotivo, divertido e – arriscamo-nos a dizer – inesquecível para quem o presenciou.
Quando há alguns meses o festival partilhou o seu cartaz diário, não conhecíamos praticamente nenhum nome deste terceiro dia. Eis o grande trunfo de um festival com bom olho para a programação: oferecer ao público novidade, e novidade que surpreende pela positiva. Os concertos dos Bandalos Chinos e de Burna Boy foram grandes surpresas que nos trouxeram emoções boas e uma sede enorme de dança. Há que agarrar estas oportunidades de sermos desacomodados e continuarmos a descobrir música, posta a tocar por curadorias em quem aprendemos a confiar.
Começámos a tarde sentados no relvado a assistir algo descomprometidamente ao concerto de Cláudia Pascoal, que parece fundir no seu espectáculo um concerto e uma sessão de stand-up comedy. O tom é quase constantemente divertido, com referências à cultura popular portuguesa (incluído a nova cultura popular, com direito a samples de publicidade ao Spotify Premium ou ao jingle composto para o programa de rádio Extremamente Desagradável). Há muita cor, e um quase excesso de energia, que fará depender do gosto de cada um a fruição do concerto. Musicalmente, não nos fascina por aí além; como conceito, parece-nos apelativo e diferente, proporcionando um final-de-tarde entretido (e aos funcionários de um dos stands da cerveja San Miguel, que vemos fazerem uma pausa no trabalho para um animado comboio). E o cover de “O Pastor”, dos Madredeus, foi extremamente bem-vindo: nenhuma referência a um dos mais intemporais projectos musicais portugueses será excessiva.
Menos divertido foi o concerto de Luiza Lian no Palco San Miguel. A art pop da artista brasileira não nos chamou a atenção, apesar dos arranjos electrónicos progressivos terem o seu interesse (mesmo na reinterpretação de temas mais antigos da sua carreira, numa abordagem ambiciosa e criativa). Se em parte responsabilizo por essa impressão uma composição que raras vezes me chamou a atenção (a excepção terá sido “Larinhas”, cujo verso “Essa rua tem o nome de um rio que a cidade sufocou” me tocou) por outro lado talvez tenha faltado alguma energia por parte da artista e do público, num final de tarde cinzento e ventoso em que a meteorologia talvez não tenha ajudado a levantar o ânimo.
Regressamos ao palco principal para ouvir o concerto de Ana Moura. Já tínhamos assistido há um ano a um espectáculo desta digressão da artista – “Casa Guilhermina” – e a base foi semelhante: explora-se o espaço entre o fado e as suas raízes africanas. Os ritmos – e os arranjos, no geral – remetem para essas outras geografias musicais, com frequentes referências ao semba, à morna e à kizomba. A acompanhar esta palete, respira a guitarra portuguesa interpretada por Gaspar Varela, lufada de ar fresco a adicionar brilho a quase todos os temas do concerto. Ana Moura interpreta os seus temas com uma presença que tem algo de mitológico, apresentando-se com uma confiança e uma fisicalidade que se impõem em palco. A interpretação de “Agarra Em Mim”, com Pedro Mafama também em palco, é o cume da expressão da sua sensualidade, a par da performance em que estreou um novo tema a ser lançado em Setembro, “Desliza”. Mas nem sempre a plateia corresponde ao convite, pelo menos inicialmente. “Desfado”, um dos momentos mais “tipicamente fadistas” do concerto, acaba por ser o tema que maior ovação acolhe por parte da plateia, assim como a interpretação a capella de “Loucura (Sou do fado)”, que emociona até uma das dançarinas em palco. Talvez nas músicas finais do concerto a plateia já se sentisse mais aquecida e se balançasse um pouco mais – tendo o concerto encerrado com a encantadora “Mázia”.
A maior surpresa da noite encontrámo-la no Palco Lisboa. A musicalidade dos Bandalos Chinos atropelou-nos subitamente, com as suas melodias estimulantes e bem desenhadas, o bom humor expresso nas atitudes e no som. Logo ao primeiro par de músicas, percebemos que iríamos gostar muito do concerto. E assim foi. O grupo argentino tem “o seu quê” a Parcels; e, comparação eventualmente mais estrambólica, a The Strokes (espreitem, por exemplo “Departamento”). Há qualquer coisa na interpretação da guitarra, na exploração do groove, nas harmonias, que remete como dupla seta para estas duas bandas, com o melhor dos gostos. “Una prupuesta” é outro bom exemplo das suas melodias orelhudas, destes refrões que começamos a cantarolar dois minutos depois de os termos ouvido pela primeira vez. Harmonias vocais claras, e uma sensação a frescura que muito alegrou este nosso início de serão. Não foi só divertido: houve emoções novas a aflorar-nos a pele. Uma banda a descobrir; obrigado ao MEO Kalorama por esta estreia em Portugal que nos pareceu tão fora da caixa.
Mas, e pese embora os Bandalos Chinos terem sido a banda que musicalmente mais nos falou ao coração, o concerto de Raye foi provavelmente o melhor concerto da noite. A cantora britânica apresentou um espectáculo quase totalmente irrepreensível (o último terço, mais pop, pareceu-nos um pouco mais atabalhoado, com menos carácter; outros haverão que terão achado igualmente estimulante). Detentora do maior aparelho vocal e pulmonar desta edição do MEO Kalorama (de todas as edições, talvez…?), mesmo nos temas que interpreta de joelhos ou sentada sobre os próprios pés, Raye é também dotada de uma personalidade muito divertida, de uma extravagância querida, e de uma vulnerabilidade extrovertida que a tornam uma autêntica personagem em palco. Uma personagem por quem criamos uma vinculação de simpatia no decorrer do concerto. Nesse sentido, fará aqui algum sentido uma referência ao estilo de comunicação em palco de uma Adele.
Ao nível do estilo da performance vocal, também à conta do território jazzístico, da soul e da pop em que se movimenta, a crítica e o público têm-na comparado a Amy Winehouse. As colinas da Bela Vista ainda se deveriam lembrar do emotivo (e algo triste e perturbador) concerto de Amy Winehouse ali mesmo, no Rock in Rio 2008. Nessa altura, em palco figurava uma Amy já em declínio acentuado de saúde física e psicológica, a oferecer uma performance tecnicamente aquém do seu avassalador timbre e talento. Entendemos a comparação com Raye – e a Bela Vista em 2024 pôde assistir agora a uma artista na plena posse e controlo das suas capacidades vocais, explorando-as com um à-vontade tão bem-disposto. É fascinante a forma como decide interpretar o final de cada tema, em elaboradas deambulações a capella que chegam a ser malabarismos sobre-humanos: ouvimos-lhe um prolongado e lento glissando que culmina numa nota agudíssima, deixando-nos boquiaberto.
É difícil fazermos jus ao quão coeso foi este espectáculo; envolvimento absolutamente exemplar com o público, uma persona alegre e divertida, uma vulnerabilidade acima da média (que me fez lacrimejar na introdução e na performance de “Ice Cream Man”, o único momento em todo o festival em que efectivamente chorei). O hype pelo concerto de Raye foi superado. Se seguir a intuição da sua musicalidade – agora que é independente de qualquer editora e pode seguir o seu próprio trilho – chegará certamente a lugares impressionantes e poderá ter a oportunidade de marcar a pop desta década.
Entre os dois cabeças-de-cartaz fomos obrigados a fazer uma peregrinação ao cimo do parque, para assistir à performance do duo de electrónica Overmono. Não saímos, contudo, convencidos; ao contrário de alguns milhares de pessoas que, imersos na música, pareciam desfrutar com intensidade do set dos britânicos. Existem passagens da música dos Overmono que convocam uma emoção especial; sequências de acordes particularmente emotivas. Mas, na maior parte daquela hora, o duo explorou os seus samples vocais (frequentemente cadências de rap) sem lhes proporcionar bases suficientemente emotivas, num jogo entre crescendos e drops típico da electrónica dançável, mas poucas vezes se aventurando para essas bases harmónicas que mais valorizamos na sua arte (e na música no geral, para ser honesto). Destaque para “Gem Lingo (ovr now)”, “For Those I Love – I Have a Love” e o closer do concerto com “Good Lies”, que tiveram talvez outro eco. Estivemos longe da imersão (ao contrário da maioria); mas não perdemos a curiosidade pelo trabalho da dupla, que queremos continuar a acompanhar.
Foi a Burna Boy que coube a responsabilidade de encerrar as hostes do palco principal do MEO Kalorama. A super-estrela nigeriana, um dos mais importantes nomes do afropop e do afrobeat a nível global, trouxe uma autêntica festa a Lisboa, que nos fez lembrar a “Rema Party” do seu conterrâneo no Primavera Sound Porto do ano passado. Um batalhão de uma dúzia de músicos, mais bailarinas, mais outros elementos que foram aparecendo ao longo da noite e que culminaram com quase vinte e cinco pessoas em palco, quase todas contribuindo para o som de alguma forma. Como repertório, um desfile de temas cujo único “defeito” recorrente é durarem tão pouco antes de o artista escolher passar ao próximo hit. Um dos atributos que mais gostamos na música de origem ou inspiração africana é aquela crença no potencial fértil que advém de uma repetição rítmica ou harmónica, e cujo tempo passado na companhia de um determinado elemento resulta numa sensação crescente de familiaridade e entrega na dança. Infelizmente, a rápida sucessão de hits faz com que não nos familiarizemos o suficiente com o potencial que cada um deles teria para oferecer. Não é problema único do concerto – já as versões gravadas destes temas são, por norma, curtas – mas a performance ao vivo poderia ser um lugar propício para a exploração de extended versions (como os LCD Soundsystem fizeram na véspera).
É das poucas limitações que encontramos no concerto. A maior parte das propostas musicais de Burna Boy são dotadas de uma enorme dose de boa disposição (contribuindo para fazer desta última noite do MEO Kalorama talvez a menos “séria” e “pretensiosa” do festival, com a ajuda da personalidade fora-da-caixa de Raye e da atitude e musicalidade brincalhona e encantadora dos argentinos Bandalos Chinos). Dança-se imenso entre o público. Há um calor humano que é também alimentado pela energia de Burna Boy, que não pára um segundo, salta, dá pontapés no ar, agita quase constantemente uma camisola ou uma toalha por cima de si ou à sua frente. Também os apontamentos de saxofone são deliciosos. Destaque para “Big 7”, uma das canções que mais sentimos, talvez pela emotiva proposta harmónica. Fica a sensação de uma grande festa, algo dispersa, mas divertida e dançante.
O horário ainda alocou um concerto de Yves Tumor no distante Palco Lisboa já a horas tardias, que acontece parcialmente em simultâneo ao de Burna Boy; por lá passámos alguns minutos, para provar a sua experimentalidade rock e testemunhar a personalidade única com que expressa a sua música. O público estava muito envolvido, respirava-se intensidade no ar. Para as pernas e ouvidos deste que vos escreve é que não havia já energia e disponibilidade mental suficiente. Haverão outras oportunidades.
Um par de notas de balanço sobre a edição de 2024 do MEO Kalorama: cartaz sólido, correndo vários estilos, e uma curadoria de qualidade que se passeia por géneros muito distintos. Foi pena termos sentido que uma grande parte do público rodava de dia para dia – mera impressão – o que significa que alguns festivais (talvez principalmente nos grandes núcleos urbanos) estão a ter dificuldade de apresentar ao público um pacote suficientemente atractivo para justificar o salto que é comprar um passe de três dias de um festival, e à boleia disso descobrir tantas bandas e ginasticar-se o ouvido. Nota positiva para a quantidade de mulheres em cima do palco (e, no primeiro dia, artistas não-binários): mesmo em concertos protagonizados por artistas masculinos, foi frequente encontrarmos mulheres instrumentistas – sinal dos tempos, muito bem-vindo. Sabe bem sentir que o parque da Bela Vista continuará a ser lugar da música, agora que o Rock in Rio saiu para o Parque Tejo – o espaço é um tesouro para este tipo de eventos na cidade de Lisboa. Por fim, referência para ao facto de termos ouvido, ao longo dos três dias, tantos a referirem ser o seu primeiro concerto em Portugal. Só entre os que tivemos a oportunidade de assistir, testemunharam-no a cabeça-de-cartaz Raye, os English Teacher, os Bandalos Chinos, Olivia Dean e Luiza Lian; para além dos The Postal Service, que também nunca tinham tocado entre nós. Um terço dos concertos a que assistimos. Sinal de um festival que, apesar de ter um cartaz alinhado com a indústria musical, está atento à paisagem e a apostar em nomes “ainda não testados” entre o público português. Desejamos que o MEO Kalorama continue a procurar solidificar a sua identidade e consiga construir cartazes de igual ou ainda mais ambiciosa envergadura nas próximas edições.