Michael Young: o sociólogo que definiu a “meritocracia” como uma distopia
Meritocracia. Um termo muito em voga nos dias de hoje, que indica que o poder é determinado pelo mérito, pelo esforço, pelos feitos individuais e coletivos. O latim mereo — de mérito — junta-se ao kratos da Grécia Antiga — que significa força ou poder — e forma um substantivo que indica uma métrica, métrica essa que se conjuga com o verbo “alcançar”. O alcançar que leva ao poder de influenciar, de decidir, de indicar o caminho a seguir. Foi um termo cunhado pelo sociólogo Alan Fox num artigo científico de 1956, mas que ficaria indelevelmente marcado pela história através de uma obra distópica de um outro sociólogo: o inglês Michael Dunlop Young.
Nascido a 9 de agosto de 1915 e falecido a 14 de janeiro de 2002, este futuro sociólogo, político e ativista de causas sociais nasceria em Manchester no seio de uma família de artistas. O seu pai, australiano, era violinista e a sua mãe, irlandesa, pintora e atriz. Cresceria na Austrália, mas regressaria a Inglaterra ainda criança, frequentando a importante escola de Dartington Hall, da qual seria futuro presidente, e a London School of Economics no ensino superior. Aqui, concluiria o curso de economia e conseguiria equivalências para exercer a função de barrister — uma espécie de advogado de contencioso — num país onde a common law se impõe (o direito vai-se readaptando às deliberações dos casos jurídicos que vão surgindo). Seria, de igual modo, aqui que defenderia a sua tese de doutoramento, no ano de 1955, um estudo sociólogo sobre os agregados familiares de East London.
Com a Segunda Guerra a eclodir na sua transição da vintena de anos para os trinta, Young tornou-se o responsável por um think tank, o Political and Economic Planning, que desenhou alguns dos projetos sociais futuros do Reino Unidos. Entre eles, está o National Health Service, que serviu e serve de referência a conceitos análogos em vários países, como Portugal. Com esta experiência aliada à jurídica que foi angariando, tornar-se-ia membro do Partido Trabalhista — o Labour Party —, no qual seria um importante ideólogo.
Isto porque, para além de fazer várias investigações de cariz social, viu-se em mãos com a redação do manifesto — o lema “Let Us Face the Future” é da sua autoria — nas eleições no pós-guerra. Com a vitória do partido, estaria ao lado do seu primeiro-ministro, Clement Attlee, mas, em 1950, desencantar-se-ia com o vazio no qual se tinha caído e voltou-se para a atividade social extrapartidária. Assim, desenhou e liderou o Social Science Research Council — que tornar-se-ia no Economic and Social Research Council —, um ramo do UK Research and Innovation, instituição associada ao governo. Esta instituição, voltada para o financiamento de projetos e formação em ciências sociais, teria a sua direção entre 1965 e 1968.
Ao longo do seu percurso, Young envolver-se-ia numa série de iniciativas sociais e académicas que lhe enriqueceriam o currículo. Ainda em 1953, por força das conclusões que lhe desapontaram na sua tese de doutoramento, nomeadamente por via da crise da habitação e da incapacidade do governo local de lhe dar resposta, está na fundação do Institute for Community Studies — hoje Young Foundation —, que enfoca a sua atividade na avaliação da relação entre as famílias e as comunidades e os serviços de assistência social, avaliando a sua eficácia na resolução de conflitos e na prestação de apoio aos mais necessitados. Hoje uma espécie de think tank, tem um papel proeminente em mobilizar projetos de inovação social de forma a combater os desequilíbrios estruturais existentes, colocando o primado no cidadão consumidor, tanto no espaço público, como no privado.
É aqui que assenta a sua vontade de ser reformista, de dar às famílias maior autonomia na gestão das suas vidas e de serem partes integrantes da sociedade na forma de cidadãos. Visa, assim, que as famílias se tornem em marcos de mobilidade e de entreajuda, capazes de ser o núcleo-base de uma espécie de socialismo cooperativo. É um momento que é consolidado pela publicação da obra “Family and Kinship in East London” (1957), que coloca de novo Young diante deste objeto de estudo, desta vez ao lado de Peter Willmott, também ele providencial na ideia e na aplicação de princípios associado ao welfare state do final da década de 1940 no Reino Unido. A análise aprofunda o estado de espírito, as preocupações e as aspirações da sociedade londrina no pós-guerra, procurando perceber o (novo) lugar de cada um na(s) sua(s) comunidade(s) e entender as relações intra e intercomunitárias. De igual modo, são aferidas as conclusões de um projeto de habitação social colocado em prática nesse período por parte do governo vigente.
Quatro anos depois, estaria por trás da origem da “Which?”, uma plataforma (em forma de revista de periodicidade mensal) que visava informar os consumidores quanto aos produtos e serviços que adquiriam. Como? Através de testes feitos com estes, de destacar alternativas aos existentes, que pudessem, não só ser competitivos, como de maior facilidade de acesso e aquisição, prestar consultoria aos consumidores e, não menos importante, consciencializar estes dos seus direitos. Foi uma resposta prestada no pós-guerra, momento em que a economia mundial acelerou e que teve os seus revezes, sem nem sempre ser unânime. Enquadra-se, assim, aqui, a fundação da Consumers’ Association e do subjacente National Consumer Council, dedicadas não, como habitual, às políticas produtivas, mas antes às políticas ligadas ao consumo; sendo ambas as instituições nas quais assenta a plataforma referida.
Em 1969, depois de estar envolvidos em várias organizações de consultoria na área da educação, está associado à criação da maior universidade pública vocacionada para a investigação, a Open University, no governo de Harold Wilson, com o objetivo de facilitar o acesso a todos à Universidade e de dotar a economia de maior competitividade e de maior igualdade de oportunidades. Associado à Open University, está o seu projeto-piloto, o National Extension College, desenhado em 1963, uma organização sem fins lucrativos com o objetivo de proporcionar ensino à distância a todos, dos mais novos aos mais velhos.
Fê-lo através de uma oferta curricular sustentada e inspirada na da Universidade de Cambridge, mas a pensar naqueles com menos possibilidades de estar presentes nas habituais aulas. Em 1982, era membro da equipa que imaginou e deu forma ao projeto da University of the Third Age, destinada à formação das classes mais envelhecidas e solitárias da sociedade. No fundo, o ensino por si mesmo e sem finalidades profissionais inerentes, focando-se simplesmente na formação dos alunos e na junção de idosos sem descendentes e de jovens sem familiares diretos. Seria uma iniciativa complementada com o projeto caritativo da “Grandparents Plus”, destinado aos mesmos indivíduos e a outros tantos agentes educativos, desde avós a tios.
Cinco anos depois, traria do papel o Open College of Arts, uma faculdade subordinada às artes cujas diretrizes letivas vão de encontro à visão do open learning, não se remetendo aos formalismos dos planos convencionais e aceitando uma maior informalidade no momento de ensinar e de avaliar. Consolidaria o seu contributo à academia com a fundação da School for Social Enterpreneurs, na qual deu oportunidades de formação e de investigação a muitos jovens. Num aspeto menos institucional, em 1990, esteve na linha da frente dos desafios que uma sociedade multilingue trazia, na sua diversidade e, em especial, nas suas minorias étnicas. Como tal, defendeu que se criassem teleintérpretes de vários idiomas, para esbater eventuais discriminações sociais. Esta ideia ficou conhecida como a “Language Line” e corporizou-se numa empresa, a Language Line Limited.
Dez anos antes, já havia estado na conceção da International Alert, uma instituição de caridade de alcance global que procura, ainda hoje, mitigar conflitos de ordem social ao tratar as bases, as raízes destes fenómenos. Com vista a manter uma sociedade mais pacífica e coesa, a necessidade adveio de faltarem respostas internacionais para falhas no zelo dos direitos humanos em contextos práticos e o cunho científico de Young e do sociólogo Leo Kuper alinhou-se com o ativismo proativo de Martin Ennals neste esforço diplomático. Uma outra prova cabal da visão socialista — quase utópica — que transportava, libertando as iniciativas de cariz socioeconómico do pendor institucional e estatal.
Membro dos quadros do Churchill College e da Birkbeck, University of London, da qual foi presidente no início dos anos 1990, receberia o estatuto de par do Reino com o epíteto de Baron Young of Darmington. Foi um estatuto do qual beneficiou para financiar as suas frequentes deslocações, em muito impulsionadas pelo seu trabalho desdobrado por inúmeras iniciativas, mas também cruzadas com as aulas que dava e demais palestras e compromissos que tinha.
Depois de uma carreira tão fértil, de onde deriva, afinal, o termo “meritocracia” e em que contexto? Pois é no ano de 1958 que é publicado, entre os vários da sua bibliografia, um livro da sua autoria intitulado “The Rise of the Meritocracy”. O centro das atenções é posto numa sociedade distópica, no ano de 2034, num Reino Unido do futuro, onde, ao invés das divisões sociais comuns, definidas pelos estratos socioeconómicos, são outras as métricas que as criam. Numa sociedade que evolui no espectro do pós-Segunda Guerra Mundial, é a inteligência humana e os méritos que distinguem uma elite que usufrui de um poder conseguido através das suas conquistas e uma classe baixa que nada conseguiu e, como tal, se encontra na base da pirâmide. É, precisamente, a elite que, nesta distopia, é a grande contribuidora de mais-valias para a sociedade, mas é a mesma que gera condescendência e arrogância da parte de quem faz parte desta elite.
Foi uma crítica feita ao sistema de ensino tripartido que se propôs em Inglaterra e no País de Gales nos meados do século XX e que distinguia os alunos por instituto, correspondendo os considerados menos capazes a um instituto cujo ensino era mais básico e os mais capazes a outros mais apetrechados e sofisticados, voltados para a universidade. Assim, a meritocracia é vista com sarcasmo por Young, ridicularizando a compartimentalização do ensino e acabando por discriminar positiva e negativamente uns e outros pelas suas eventuais capacidades e potencialidades intelectuais. Seriam, antes, os tempos e as pessoas desses tempos a apoderarem-se da palavra para lhe darem uma nova roupagem, sendo o primeiro entendimento deste sentido proveniente do sociólogo pós-industrialista de Harvard Daniel Bell. Uma delas seria, precisamente, um dos futuros líderes do Labour Party, Tony Blair, que defendia o(s) mérito(s) e os resultados como argumentos para indivíduos serem apontados para determinados ofícios e/ou cargos.
A obra teria os seus méritos: contribuiria para a abolição deste sistema de ensino, eliminando eventuais bloqueios de acesso a estudantes às diferentes escolas existentes, distintas pela oferta e nas barreiras à entrada de novos alunos. Também pôs em causa as figuras que ocupam os lugares e os espaços de poder e o conjunto de regras e de requisitos necessários para o poder fazer. Este trabalho chegaria à atenção de nomes como Hannah Arendt, que concordaria com a crítica feita e direcionando-a para o sistema educativo inglês.
Numa equação em que a meritocracia é a soma da inteligência, da cultura, da experiência e da energia, Michael Young traz um resultado positivo, um número inteiro de contribuições para a melhoria da sociedade como um todo. Embora a meritocracia se tenha tornado num termo convincente como chavão para metas socioeconómicas, é mais o legado institucional e académico que perdura ainda nos dias de hoje. A tentativa de diminuir assimetrias por fatores outrora ainda mais discriminatórios foi uma bandeira que procurou ostentar no seu percurso, pugnando, desde sempre, pela igualdade de oportunidades. Por um ensino mais equilibrado e acessível, para que os méritos não se cingissem a uns quantos. A meritocracia que quis não foi a que escreveu mas antes a que viveu.