Michelangelo Antonioni, o passo em frente

por Alexandre Pinto,    5 Setembro, 2021
Michelangelo Antonioni, o passo em frente
Filme “Il deserto rosso” (1964), de Michelangelo Antonioni
PUB

Recordo-me da primeira vez que vi um filme de Michelangelo Antonioni; foi L’Avventura (1960), que revi, na noite seguinte, munido da faixa áudio de comentários académicos. Deste então, vi mais alguns, revi-os, explorei mais — algo me impressionou naquela ilha, nos diálogos entre os despreocupados da classe média, na sua frustração ou ennui. Muito se há-de escrever ainda, e pensar e sentir, sobre Antonioni e os seus filmes, causa à qual dedico estas parcas linhas, pouco após mais um reencontro com Il Deserto Rosso, de 1964, um dos vários trabalhos que a Leopardo Filmes apresenta em Portugal em versão restaurada, no ciclo Michelangelo Antonioni – O Passo em Frente.

Há dois períodos muito especiais na sua carreira que são por este filme mediados; o primeiro filmou-o na Itália natal, e estabeleceu a seminal trilogia que abarca L’Avventura a L’Eclisse, e que mais tarde se olhará como a trilogia da modernidade, ou existencial; o segundo período envolve filmagens estrangeiras, donde resulta Blow Up, em 1966, porventura outra porta de entrada para o seu universo. Il Deserto Rosso é, então, visto como um passo intermédio entre ambos, mas não que de forma alguma o menorize.

Ainda antes de a narrativa centrar na personagem de Giuliana, modelada por Monica Vitti, acompanhamo-la nos seus trépidos passos junto de um imponente complexo industrial que se oferece à contemplação nos primeiros momentos do filme, onde há fogo, fumo, e muito ruído mecânico; mas a câmara atenta na estrutura como se o inspeccionasse — fazendo dela protagonista —, percorrendo as cablagens, os metais, misturando os ruídos diegéticos com a banda sonora vanguardista de Giovanni Fusco. Vêm à mente as experiências proto-noise de Luigi Russolo, por exemplo, que pretendia, no início do século XX, uma modernidade no som; Antonioni fez disso também a sua bandeira, mas propunha a modernidade partindo do cinema, até onde ele pudesse chegar.

O início da sua carreira foi marcado pela força do neo-realismo italiano, e o interesse manter-se-á, apesar de transfigurado, nesse período da primeira trilogia: tal como Rossellini manifestou vontade em filmar um real genuíno, Antonioni avança e deixa de focar a câmera no acto, para incidir no que o precede, ou na sua consequência. Será nos diálogos, nos pequenos gestos, nos magistrais enquadramentos, que se obtém uma impressão psicológica, ou um apontamento poético, e a soma de todas estas partes contribui para uma ficção que retrata a classe média entediada, a dar os seus passos num mundo diferente: moderno.

Antonioni reflectiu amplamente, em artigos, colóquios ou entrevistas, sobre o papel do Homem neste novo mundo, sobre as mudanças necessárias e inevitáveis na nossa forma de ser e de estar. Imaginou, por exemplo, uma evolução do catolicismo, que nos permitisse desprender as amarras de uma moralidade desajustada às vicissitudes do tempo moderno, mas o próprio afirma em conversa com Godard que este já não é, ao contrário da trilogia anterior, um filme que trata o sentimento — o âmbito do estudo vai mais além, com foco nas reacções da inadaptada Giuliana ao mundo que a rodeia. Giuliana atravessa uma crise transversal na sua vida, do matrimónio à maternidade, e vemo-la agir como se estivesse em permanente cisão com o mundo. O marido reconhece um transtorno na sua personalidade após um acidente de viação, que confidencia a Corrado, seu colega, que ali se encontra em busca de trabalhadores para um projecto na Patagónia.

A leitura de que Il Deserto Rosso se destaca dos três precedentes começa porventura no uso da cor, até então inédita, e porque o retrato é desta vez mais íntimo. Tudo o que acompanhamos são acontecimentos pouco importantes; quotidianos. Corrado aproxima-se cada vez mais de Giuliana, enquanto ela o acompanha em várias visitas no terreno. Vemos a nova Itália, erma e futurista: as antenas, os metais, a poluição, os desertos. Nalguns momentos, o ritmo estagna de tal forma que parece uma pintura, em movimento subtil; a imagem, auxiliada pela cor e pelo som, parece não olhar, mas com o seu auxílio comentar o universo de Giuliana, em retrato mais sensorial que objectivo.

Não interessa saber mais sobre a narrativa, até porque não há nada de especial na narrativa. “You could say that Antonioni was looking directly at the mysteries of the soul”, escreveu Martin Scorsese a propósito de L’Avventura (na primeira projecção oficial em Cannes, o filme foi de tal forma vaiado pelo público que vários realizadores sentiram o dever de o louvar, em nota escrita; doravante venceria o prémio do Júri, no mesmo ano de 1960). Este ciclo documenta uma linguagem muito própria, que marcou indelevelmente o cinema e encontra linhagem em Wong Kar-Wai, Tarkovsky, e muitos outros — não só no óbvio ritmo e na lassidão da câmara, mas também na forma como o cinema é trespassado por ideias, e ele próprio as verte, veículo da sua contemporaneidade. O ciclo continua em Lisboa até ao final do mês de Setembro, e poderão encontrar alguns dos filmes no Porto, Braga, ou Coimbra. Mais informações aqui.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados