Miguel de Cervantes: as sátiras vividas e escritas

por Lucas Brandão,    2 Julho, 2018
Miguel de Cervantes: as sátiras vividas e escritas
Retrato do escritor espanhol Miguel de Cervantes (c. 1877), de Eduardo Balaca
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Entre os autores mais notáveis do passado milénio, chega o nome que prestigia a literatura espanhola há vários séculos: Miguel de Cervantes Saavedra. Cervantes é o nome de um rosto que encabeçou uma experiência de vida atribulada, entre conflitos bélicos e fugas prisionais, para alcançar uma literatura caraterística e diferenciada, na esperança fantasiosa do picaresco Dom Quixote. Foi mais aquilo que o espanhol providenciou ao castelhano, nos séculos subsequentes ao da sua morte, do que o oposto, para além de um imaginário que perdura nos estudos e nas referências daqueles que falam espanhol e seus idiomas familiares.

A data estimada do seu nascimento é a de 29 de setembro de 1547, dia de celebração de São Miguel, que lhe viria a emprestar o nome. Filho de um casal originário de Alcalá de Henares, foi batizado em outubro desse ano. Entre várias atribulações, recebeu uma educação religiosa, numa escola jesuíta. Entretanto, a sua vida orienta-se para a defesa da sua pátria, alistando-se no exército. Com 22 anos, e já com produção poética vinda do seu cunho, foge para Itália, após um duelo onde feriu um compatriota seu. Em 1571, dois anos depois, envolve-se na Batalha de Lepanto, no contexto das Guerras Turco-Venezianas, da qual sai ferido no peito e na mão esquerda, tornando-se inutilizável.

Se demais infortúnios já tivessem ocorrido, durante o regresso de Nápoles, é atacado e raptado pelos corsários de Argel, associados ao Império Otomano. De 1575 a 1580, seria feito recluso na futura capital da Argélia, sendo libertado após o seu resgate ser pago por familiares seus, mas não antes sem tentar, por diversas ocasiões, a fuga. O retorno à sua casa-mãe seria adiado para 1583, vivendo em Lisboa durante dois anos, numa altura em que já se fazia sentir a presença filipina em Portugal. Após se encantar com a cidade e com os seus, regressou a Castela, casando-se com Catalina de Salazar um ano após regressar, para além de se dedicar ao teatro, vivendo na periferia de La Mancha.

A sua ficção começou a ser lançada em 1585, com inspirações profundamente mouriscas e bizantinas, com “La Galatea”. A esta, seguiu-se, em termos de predominância, “Don Quijote de La Mancha”, que redigiu após se ver novamente preso. Esta só seria lançada em 1605, na forma da sua primeira parte (“engenhoso fidalgo”), com a segunda a chegar dez anos depois (“engenhoso cavaleiro”). Dividida em seis livros, “La Galatea” estreia Cervantes nos romances pastoris, trazendo uma dialética evidente entre o ideal e o real (o locus amoenus), em quem Elício e Erastro se digladiam pelo coração de Galatea, uma pastora que consagra as virtudes que Cervantes deposita nas suas heroínas. Entre elas, a discrição, a ética, a inteligência, a bondade, a honestidade e a independência espiritual, que a leva a encarar com sensatez o galanteio dos seus pretendentes. O amor é o objeto de escrutínio do espanhol na sua literatura, pensando a sua natureza e a sua psicologia, tendo em conta o que gera e o que proporciona, começando no seu amanhecer e terminando no anoitecer, à imagem das éclogas tradicionais. O ideal em que o conto orbita transmite a sua herança do Renascimento, onde o reencontro com o mais puro e verdadeiro volta ao bucólico, aos frutos da Natureza.

Já Dom Quixote é um dos protagonistas da literatura ocidental, por incorporar os ideais de um cavaleiro inspirado pelo sonho, muito mais do que pela competência e pela astúcia, cansado de ler os romances que os idolatravam, decidido a lançar-se como um cavaleiro andante. É um desejo desenfreado e até imprudente o que move este personagem quase burlesco, ao lado do seu aio Sancho Pança e do seu cavalo Rocinante. É uma sátira à tradição cavaleiresca e à sociedade do século XVII, que se mune de grandes aspirações e inspirações para as classes cortesas, advindas dos seus poderes, propriedades e feitos, sátira que seria uma das obras mais traduzidas no mundo. O expoente do que se entende como literatura picaresca escreveu-se na malandragem e na inconsequência com que Cervantes caraterizou este rosto do imaginário espanhol.

O amor não é senão o desejo; e assim, o desejo é o princípio original de que todas as nossas paixões decorrem, como os riachos da sua origem; por isso, sempre que o desejo de um objecto se acende nos nossos corações, pomo-nos a persegui-lo e a procurá-lo e somos levados a mil desordens.
La Galatea

“Novejas Exemplares” (1613) e “Viaje del Parnaso” (1614) encaminharam o percurso que o levaram à sua última obra, “Ocho Comedias y Ocho Entremuesos Nuevos” (1615), fora “El Cerco de Numancia”, que só seria lançada nos suspiros finais do século XVIII, uma tragédia renascentista que exulta o sacrifício coletivo em prol da glória espanhola. “Novelas Ejemplares” trazem mais de uma dezena de histórias, redigidas entre 1560 e 1613, destinadas a transmitir um caráter didático e moral, à imagem do que se escrevia, à data, em Itália. Este grupo divide-se em enredos mais idealistas, sem se assistir à evolução das personagens, já aperfeiçoadas, e ricos em circunstâncias (“El amante liberal”, “Las dos doncelas”, “La española inglesa”, “La fuerza de la sangre” e “La señora Cornelia”), e em outros realistas, vocacionadas para uma crítica mais concreta (“Riconete y Cortadillo”, “La gitanilla”, “La ilustre fregona”, “El coloquio de los perros” e “El licenciado Vidriera”).

Cervantes partiria um ano depois, entre 22 e 23 de abril de 1616, deixando todo esse legado literário, complementado com “Los Trabajos de Persiles y Sigismunda”, lançados nesse período final. Esta obra póstuma narra uma série de peripécias de um casal de príncipes nórdicos, Persiles e Sigismunda, que se enamora e que se embate com uma anagnórise, numa revelação que altera o comportamento da(s) personagem(ns), surgindo como uma crítica aos novos romances renascentistas, que procuram o idílico do amor. O casal altera os seus nomes para Periandro e Auristela, simulando ser irmãos, numa viagem que iniciam pelo Norte da Europa até Roma. Assiste-se, assim, a um cruzamento de aventuras de cariz grego, à imagem de uma epopeia homérica, com uma mundividência cristã. Cervantes partiria praticamente no mesmo dia que William Shakespeare, no mesmo ano, com o dia 23 de abril a simbolizar o Dia do Livro em Espanha.

A liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens. Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra no seu seio, nem os que o mar guarda nos seus abismos. Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vida.
Dom Quijote de La Mancha

Para além de redigir os romances pelos quais é sobejamente conhecido, Cervantes escreveu poesia e peças de teatro, nas quais não perdeu a sátira que caraterizou a sua literatura em prosa. Na poesia, até criou a estrofe chamada ovillejo, com dez versos agrupados em duas secções, uma de seis e outra de quatro; e o estrambote nos sonetos, que são versos que adulteram a métrica, para reforçar o tom satírico. É aqui que se enquadra “Viaje del Parnaso”, com os seus tercetos a contarem a viagem do autor ao Monte Parnaso, orientado pelas figuras mitológicas de Mercúrio e Apolo. Por sua vez, no teatro, escreveu várias comédias e entremeses (comédias num só ato), das quais são exemplo as que fazem parte de “Ocho Comedias y Ocho Entremuesos Nuevos”. No entanto, a toada alegórica e moral delimita a ação, o tempo e o lugar das suas peças, sendo as referências aristotélicas que norteiam a sua redação. Esta dimensão dramática da sua obra liga-se às suas novelas, numa intertextualidade que interliga a sua escrita num meio concreto, para além de se imbuírem na vida do autor espanhol, como no caso de “El Trato de Angel” (comédia de cautivos, género inspirado no cativeiro vivido por Cervantes), envolvendo a sua experiência como soldado e o seu tempo encarcerado, embora de forma cómica.

Miguel de Cervantes é um marco daquilo que se escreveu a ocidente, fundindo as aventuras e as peripécias fantásticas com o ambiente pastoril e de cavalaria, herança da Idade Média. Do seu cunho, sem deixar de revelar uma toada realista, construir ficções sobre outras ficções, com perspetivas ambivalentes, tanto em prosa, como na sua poesia e no teatro. O espanhol introduziu, assim, uma nova tradição literária, com estruturas narrativas concretas, munidas de várias proveniências, resultado de vivências e de experiências que aprofundaram e compreenderam as suas realidades. Entre obras perdidas e outras atribuídas, o reconhecido e certo legado de Cervantes, da existência e do que se lhe sucedeu, para o instituir e restituir para a eternidade.

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