‘Mother!’: o apocalipse por lapidar de Aronofsky
Estreou ontem em Portugal o novo thriller de Darren Aronofsky, Mother!. O realizador diz ver na génese do filme uma crítica à humanidade que alimenta todos os dias o aquecimento global a nível mundial. O público encontra também no filme uma crítica à paixão assolapada pela fama, e a própria atriz principal do filme, Jennifer Lawrence, diz ver nele uma crítica à sociedade dos falsos ídolos, desde os religiosos, às superestrelas que como ela própria são vítimas de um culto ao líder que nunca desejaram. É óbvio que este filme tenta criticar algo, mas quando uma crítica é alvo de tantas interpretações diferentes pode perder-se e poderá não correu muito bem.
O novo filme do realizador de Black Swan e Requiem For a Dream começa com um bater à porta da nova casa de um casal, casa que ainda está por terminar as remodelações. Javier Bardem é um poeta mundialmente conhecido que não consegue produzir nova obra há tempo indefinido, e Jennifer Lawrence o seu anjo (pelas palavras do mesmo) e futura mãe do seu filho. À porta do casal, encontra-se um médico que confundiu a casa com um bed and breakfast, e é convidado para ficar uma noite por não ter onde ficar. A partir desse momento, focamo-nos nos estranhos acontecimentos que acompanham os meses que sucedem: desde a chegada da mulher e filhos do médico à casa, até a casa se tornar num local de culto ao poeta, povoada por centenas de pessoas. Este crescendo de intrusão no espaço pessoal do casal é abordado como leaps de intensidade na degradação da casa, do casal, e da mulher.
Mother! é um dos filmes mais audaciosos e bizarros que um estúdio de dimensão universal, como a Paramount Pictures, lançou nos últimos anos. Aronofsky nunca se distanciou do cinema controverso, e pelas palavras do próprio, quer sempre que o «aplaudam ou vaiem», apenas não tolera a indiferença. Numa tentativa de se redimir pelo que foi Noah, Aronofsky parece ter feito o público reagir novamente, mas pelas piores razões. Este filme consegue ao mesmo tempo ser uma homenagem a mestres de terror como Polanski ou De Palma, mas ao mesmo tempo consegue ser um filme que ninguém a não ser Aronofsky conseguiria fazer. Isto, a par da realização sublime, performances passáveis e certas cenas pontuais de brilhantismo tanto ao nível da operação de câmara como da construção de cenário físico e humano, é tudo o que se pode dizer de bem deste filme.
Col Needham, fundador e chefe executivo do IMDb, confessa que considera este um «filme de Schrödinger. Por dentro da caixa encontra-se um filme que é ao mesmo tempo muito bom e muito mau». No entanto, e apesar de ser impossível de discordar completamente, é Rex Reed, do New York Observer que, na minha opinião, acerta na descrição por completo, dizendo que «este freak show delirante é apenas duas horas de disparates pretensiosos». Já o CinemaScore, empresa de pesquisa de cinema que atribui a públicos “teste cartões” para votar os filmes de A a F, classificou este filme com um F, sendo que é muito raro um filme ter esta cotação, e quase todos os casos onde de facto os filmes são chumbados, adivinham uma má performance na bilheteira. Alguns casos notórios de filmes com F são o remake de Solaris de Tarkovsky, realizado por Steven Soderbergh, Bug de William Friedkin ou Killing Them Softly de Andrew Dominik.
Apesar de todas estas opiniões construídas, muitos são aqueles que insistem em tentar encontrar algo de genial na nova obra de Aronofsky. Sejam eles acólitos do realizador ou uma espécie que se compara aos que finjem ver brilhantismo numa tela branca, é difícil de defender as poucas qualidades que o filme tem, que se perdem no meio de tanto pretensiosismo. Ao vermos este filme com essas pessoas em mente, tudo o que nos passa pela cabeça é a história do Rei que se passeia nu pelas ruas do seu reino, e todos os seus súbditos parecem não ver, pois não querem ter a ousadia de apontar o dedo ao seu superior.
Com uma imageria forte, mas sem nenhuma razão de ser concreta, sem um objetivo que apareça claro de todo, a qualidade da realização e trabalho de câmara perde-se numa questão de forma vs substância, onde a forma parece ser o papel principal do filme. Todos os planos super aproximados, por muito interessantes que sejam e por mais que façam com que o filme fale mais do que pelas suas palavras, focam a sua atenção no erro de casting que foi Jennifer Lawrence e falham ao ser concretos no que deve ser o foco da atenção do público quando a nova musa de Aronofsky não está em cena, tornando-se também repetitivos muito rapidamente. Toda a veia sobrenatural deste filme, que faz lembrar o cinema de Lars von Trier, parece forçada e não tem nenhuma razão de ser concreta – o espelho entre a personagem de Lawrence e a casa com coração não chega para retirar o público de uma experiência imersiva natural para o catapultar para um bizarro universo onde casas sangram e poetas não morrem queimados. Este último apontamento falha na tentativa de fazer o mesmo que M. Night Shyamalan faz na perfeição, especialmente no seu último filme, Split: introduzir uma quantidade mínima de sobrenatural para transmitir uma mensagem, desenvolver uma crítica, ou fazer o público pensar sem sequer se aperceber disso, sobre questões muito naturais, alimentadas pelo sobrenatural.
Por fim, tendo falhado tão solidamente em tantos aspetos, o brilhantismo de Aronofsky, que parece não se ter esgotado ainda, é o que nos leva a querer ver o próximo filme do cineasta. Em Mother! a vida na casa funciona de forma cíclica com apocalipses ocasionais e recomeço de vida após os mesmos. Talvez seja este o Apocalipse que Aronofsky precisa para nos presentear com uma obra ao nível de Black Swan quando decidir voltar a sentar-se na cadeira de realizador.