O gesto, a performance e o carácter são a mensagem de “A Baleia”, de Darren Aronofsky

por Miguel Rico,    26 Fevereiro, 2023
O gesto, a performance e o carácter são a mensagem de “A Baleia”, de Darren Aronofsky
“A Baleia”, de Darren Aronofksy / DR
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Este artigo pode conter spoilers.

“A Baleia” (“The Whale”), de Darren Aronofsky (“A Vida Não é um Sonho”, “Cisne Negro”, “Pi”, “Noé”, “Mãe!”), uma adaptação da peça de teatro homónima por Samuel D. Hunter, explora as profundezas da natureza humana enquanto disseca uma perturbadora anatomia da solidão através de um retrato grotesco e cúmplice do que poderia ser a realidade de alguém. Realizado como um “filme de câmara”, apresenta-nos a um elenco reduzido, mas enorme, de seis performances sublimes. Teve a sua estreia no Festival de Veneza (2022), foi exibido no LEFFEST’22 e chega às salas portuguesas dia 2 de março, distribuído pela NOS Audiovisuais.

Após o seu último filme, “Mãe!” (2017), Aronofsky volta a dividir os espectadores e a crítica com uma obra tão perturbadora quanto alegórica. “A Baleia” marca o regresso do ator Brendan Fraser no papel de Charlie, um professor de inglês no ensino superior, que dá as suas aulas online e sofre de obesidade mórbida. Durante as sessões, não apresenta imagem sob o pretexto de que a sua câmara não se encontra funcional, quando, na verdade, não quer que os seus alunos vejam o seu aspeto. Após descobrir padecer, igualmente, de insuficiência cardíaca congestiva, Charlie tenta redimir-se do seu passado ao reaproximar-se da sua filha, Ellie (Sadie Sink).

“A Baleia”, de Darren Aronofksy / DR

Apesar da sua condição de saúde, o protagonista recusa-se a ir ao hospital e permanece a cuidado da irmã do seu falecido namorado, e enfermeira, Liz (Hong Chau). A cuidadora, reticente quanto à reaproximação de Charlie a Ellie, esforça-se para proteger o protagonista de quaisquer adversidades. O seu trabalho dificulta-se com a chegada de Thomas (Ty Simpkins), um jovem missionário que surge para tentar evangelizar Charlie.

Este é um filme feito de repetições, as personagens entram e saem de cena com a inconstância das marés e o engenho narrativo é edificado através desta dinâmica pendular. Visitas, trabalho solidão… Observamos, atentamente, um processo moroso de autodestruição e aquilo que parecia ser um mecanismo para lidar com a perda — pois Charlie entra no ciclo após a morte do seu namorado — torna-se numa ideia mais intensa e profunda.

Em “A Baleia”, o ato de comer é representado como algo absolutamente grotesco e, com isto, o filme não pretende doutrinar sobre este tipo de comportamento, nem sequer atuar pela pena, mas antes elevar a ação de consumir uma refeição à ideia de consumo — no sentido de obliteração — do próprio ser e à devoração absoluta da própria dignidade humana. A comida não preenche o vazio da vida de Charlie, não é essa a intenção, pois este não é um filme sobre as dificuldades de uma pessoa com obesidade mórbida, mas sim uma história de redenção. A metáfora da baleia não constitui uma mera ofensa, mas antes uma parábola e um simbolismo: a morte e a ressurreição para a vida eterna, tal como Jonah, engolido pela baleia, na Bíblia.  

“A Baleia”, de Darren Aronofksy / Cortesia A24

Torna-se evidente que Charlie é um corpo gigante no qual deve caber um coração ainda maior e, durante o último ato do filme, apercebemo-nos que o protagonista não representa o animal marítimo, mas sim um astro. A câmara não o persegue, orbita-o. Aronofsky e Hunter afastam-nos da personagem, mas apenas para nos manter numa rota de colisão com as nossas próprias suposições, estigmas e preconceitos. A baleia é o pequeno apartamento em que Charlie se encontra, engolido como Jonah.

A dimensão psicológica da personagem é maior do que aparenta, algo que Samuel D. Hunter, também argumentista do filme, ornou atentamente e que Fraser entrega sem qualquer nota em falso. É certo que tanto o argumentista, como Aronofksy, esperavam que esta leitura tornasse “A Baleia” num excelente filme, algo que não aconteceu, pelo menos, não por mérito técnico ou formal.

Os momentos de exposição, e talvez existam demasiados, são utilizados como um arpão, e, consequentemente, o enredo acaba por despertar diferentes emoções nos espectadores e dividir a crítica. Esta obra assume a forma de “filme de câmara” para transpor o seu carácter dramatúrgico ao cinema e, talvez por isso, muitos sintam que não tira proveito de todas as potencialidades do meio cinematográfico. Estão certos. Em determinados momentos, “A Baleia” é uma peça de teatro filmada. O desenlace é, para os padrões de Aronofksy, desapontante e excessivo, não na forma, mas no âmago narrativo.

Existem, não obstante, elementos interessantes que contribuem para a aproximação emocional à personagem de Charlie. O amor pela literatura e o seu gosto pela escrita de ensaios estabelecem uma ligação a Ellie e esboçam temáticas pertinentes que contornam o seu carácter para evitar a caricatura.

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A direção de fotografia, em particular a movimentação da câmara, gesticula as mesmas insinuações durante todo o filme. A mensagem torna-se repetitiva. Rodamos em torno de Charlie, sentado no sofá, imponente, mas exausto, como um animal ferido prestes a afundar-se nas profundezas do oceano, à semelhança do navio de Ahab que persegue Moby Dick na esperança de a capturar.

Devo dizê-lo, apesar de prezar alguns dos aspetos técnico-formais, é o desempenho de Fraser que resgata o filme. É absolutamente avassalador e valeu-lhe uma ovação em pé que durou cerca de 6 minutos no Festival de Veneza. O ator conquistou os Critic Choice Awards e encontra-se, agora, nomeado para o Óscar de melhor ator principal na 95.ª cerimónia dos prémios da Academia.

A banda-sonora, a cargo do compositor Rob Simonsen é muito boa e parece erguer os quilos do protagonista, enunciando-o como uma criatura marítima de enorme envergadura. Seria fácil, dado o género e as temáticas do filme, cair na típica sonoridade que acentua o carácter dramático do filme, no entanto, nesta película, até a música parece enaltecer e complementar as performances dos atores e o coincidir com a apresentação das personagens. O que ouvimos é uma travessia em alto mar e os obstáculos de uma odisseia.

É evidente que o protagonismo de Fraser e o desempenho dos restantes são o cerne do filme e, tanto Aronofsky, como Hunter, o sabem. Em “A Baleia”, o gesto, a performance e o carácter são mensagem. Se o filme não age enquanto cinema, poderíamos argumentar que o faz com a intenção de dar palco aos atores, de deixar o enredo atuar através deles sem monopolizar o protagonismo, o que explica as três nomeações às estatuetas douradas (melhor ator principal, melhor atriz secundária e caracterização).  

É inevitável destacar o incrível desempenho de Hong Chau, nomeada a melhor atriz secundária. A humanidade da sua personagem contrasta com a personalidade ferida de Charlie e o resultado é um pingue-pongue de atuações extraordinárias. A atriz incorpora, com destreza, o tom indeciso de gentileza implacável com toda a densidade dramática que o papel exige. Chau é autêntica e efervescente, deixa os sentimentos à flor da pele e é pena que o argumento não abranja a totalidade do seu potencial.

Há que elogiar, igualmente, a brilhante performance de Sadie Sink, no papel de Ellie, a filha do protagonista. Sink, que já revelava traços de genialidade enquanto jovem atriz na série Stranger Things (especialmente na 4.ª temporada) interpreta, em “A Baleia”, uma adolescente maldosa, manipuladora e desinteressada, que é também a musa do filme.  

No que toca à personagem de Fraser, a entrega de cada linha de diálogo sublinha um sentimento e cada gesto atua no espectador para o fazer sentir na pele o permanente impedimento de quem perdeu a força, mas não a esperança. A mobilidade — ou falta dela — é convincente, consciente e pensada ao pormenor. As interações do ator com o espaço tornam o cenário num recetáculo à mensagem central do filme e o pequeno apartamento passa a ocupar um lugar no imaginário do espectador através da persistência no ecrã e do contacto que o protagonista estabelece aos objetos, móveis e espaços. Por esse motivo, acredito que captar o filme numa proporção de tela de 1.33: 1 (também conhecido por 4:3) não é uma opção tomada por mero fetichismo, mas antes uma forma de enquadrar o essencial e fazer com que o protagonista ocupe uma grande porção da tela. A sua figura preenche o quadro e, consequentemente, a narrativa, deixando pouco espaço para que a forma do filme atue por si, mas por um lado ainda bem, pois a forma isolada está longe de ser o suficiente.

Apesar de tudo, “A Baleia” poderá tornar-se numa obra compreensivelmente mal-interpretada, que apela à empatia pelo sentimento de pena e não pela aceitação. No entanto, acredito que pretenda demonstrar que é possível estas perspetivas coexistirem sem que seja colocada em causa a humanidade de alguém, mesmo que se interrogue a magnitude da sua dignidade.

No final do filme, os motifes religiosos culminam numa proposta sinuosa e ambígua, demasiado óbvia e pouco original, mas que, por um lado, não deixa de transmitir alguma simpatia sem comprometer, inteiramente, a integridade do enredo. Existe espaço para interpretação no limiar entre a esperança e a ideia de que “ninguém pode salvar ninguém”, plasmada no tão mencionado Moby Dick. Apesar de tudo, somos deixados com a premissa otimista de que “as pessoas são incapazes de não se preocupar” e isso tem algum valor.

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