Simone de Beauvoir: “Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres”
Simone de Beauvoir é uma das figuras proeminentes no que toca ao movimento feminista e ao existencialismo no século XX. A autora francesa partilhou o protagonismo da sua produção literária com nomes como Albert Camus, Maurice Merleau-Ponty, Claude Lévi-Strauss, e como o seu grande parceiro de vida e de perspetivas, Jean-Paul Sartre. Apesar de não se considerar como uma filósofa, é inegável a sua influência nos movimentos acima apontados através dos romances, biografias e monografias sociopolíticas produzidas. Para além da escritora, foi mente pensante e deslumbrante, não só pela abrangência como pelas causas e pelo que dava de si às mesmas. Simone acreditou, lutou e venceu pelo contributo afirmativo que deu aos seus conterrâneos mais novos. França nunca mais foi a mesma após tê-la nos seus braços.
Nascida a 9 de janeiro de 1908 em Paris, cidade que a viu nascer, aprender, viver, acreditar, lutar, escrever e cessar, Simone de Beauvoir foi a autora de algumas obras fundamentais para que o existencialismo fosse consolidado e para que o feminismo tivesse uma voz mais demarcada e assertiva. A francesa formou-se de forma apetrechada, licenciando-se em Matemática no Instituto Católico da capital francesa, literatura e línguas no Institut Saint-Marie e a sua predileta filosofia no Sorbonne. Nesta, defendeu uma tese em que analisava a filosofia de Leibniz e foi somente a nona a obter uma graduação na mencionada instituição. No entanto, não foi aí que parou. Inscreveu-se numa pós-graduação em Filosofia na École Normale Supérieure e travou conhecimento pela primeira vez com o seu futuro companheiro de vida Jean-Paul Sartre. Apesar de ambos nunca terem casados, a sua ligação manteve-se viva e intensa na partilha de perspetivas, de experiências, de sentimentos e até de inspirações, tendo ambos os conceitos de Hegel e de Leibniz como orientadores das suas consciências e obras.
No que toca à literatura escrita por Simone, tudo começou com o romance “L’Inviteé” “(1943), que acaba por ter como cenário o pré-Segunda Guerra Mundial. O casal Françoise e Pierre acaba por ver a sua relação condicionada ao acolher no seu relacionamento um terceiro elemento. A história é percecionada no ponto de vista de Françoise e explora conceitos como a liberdade existencialista, o “angst”, que, para Kierkegaard, significava medo, ansiedade ou temor, e o outro. Esta promiscuidade acaba por ser uma réplica do caso do casal Beauvoir e Sartre com as irmãs Kosakiewicz. Enquanto Sartre queria estabelecer uma relação com Olga (estudante de Simone) e não foi correspondido, este iniciou uma com a sua irmã Wanda. A autora acaba também por refletir nas consequências psicológicas advindas destas experiências a três.
O primeiro ensaio filosófico da francesa intitulava-se “Pyrrhus et Cinéas” (1944) mas foi o seu segundo que a consolidou como uma filósofa prestigiada no campo existencialista. “The Ethics of Ambiguity” (1947) é um trabalho que, apesar de simples compreensão, clarifica algumas inconsistências teóricas que se arrastavam até então. Num confronto entre a realidade absoluta e as restrições circunstanciais, esta obra divide-se em três partes lógicas. A primeira (“Ambiguity and Freedom”) engloba a postura ética de Simone que é também analisada no seu primeiro ensaio, em que afirma que o homem é essencialmente livre, liberdade essa que deriva do nada que representa. Esse aspeto é o que a mesma considera ser fundamental para ser consciente da sua existência. A liberdade assinalada acima exige, no entanto e a seu ver, a realização de objetos e projetos concretos.
A segunda (“Personal Freedom and Others”) contém uma enumeração de formas pelas quais uma pessoa pode tentar impedir a sua liberdade, visto que esta pode ser desconfortável e inquietante para o sujeito. Contudo, não nega a existência da liberdade genuína, em que o entusiasmo de um aventureiro e a paixão de um entusiasta acabam por ser complementados à preocupação com o alheio e com as suas liberdades. Na terceira parte (“The Positive Aspect of Ambiguity”), dividida em cinco secções, a existencialista critica a contemplação desligada das coisas, explora os contras da opressão, avaliando as relações entre o opressor e o oprimido e a perceção de cada um dos intervenientes e disseca sobre as necessidades de perpetrar atos violentos e os dilemas morais advindos desta. Para além disto, enuncia também a relação ação (passado + presente) – efeito incerto (futuro), criticando o materialismo determinista de Karl Marx e conclui asseverando que todos somos radicalmente livres se escolhermos conferir essa vontade à nossa existência na sua finitude, caminho que levará ao infinito (transcendência).
“Passion is converted to genuine freedom only if one destines his existence to other existences (…) To will oneself free is also to will others free.”
Em termos jornalísticos, a gaulesa, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty e outros fizeram parte da primeira editoria do periódico “Les Temps Moderns” (1947). O nome proveio do filme de Charlie Chaplin “Modern Times” (1941) e acabou por ser um congregador de crónicas opinativas sobre as temáticas que dominavam a realidade então. Simone editou nesse jornal até ao fim da sua vida e usou-o substancialmente para promover o seu trabalho e as suas ideias. Foi também neste espaço que a escritora promoveu a obra “Le Deuxième Sexe” (1949). Nesta produção, a autora abordou o tratamento da mulher durante as várias gerações compreendidas pela História e, de forma implícita, desencadeou a segunda fase do feminismo, assente na revolução moral visada no livro.
Como existencialista, a filósofa acreditava que a existência antecedia a essência e que, por isso, um sujeito tornar-se-ia uma mulher, não nascendo uma. Pegando no conceito hegeliano do “Outro”, concluiu que foi a construção social da figura feminina e a conceção de que esta se tratava da antítese do Eu também moldado socialmente que se revelou crucial para a opressão da mesma, declarando que as mulheres são tão capazes de escolher como o homem e que, por isso, se podiam transcender de igual forma. Esta posição exige que a mulher assuma responsabilidade por si e pelo mundo onde age, onde escolhe a sua liberdade e os contornos desta. Numa parte subsequente, de Beauvoir culpa os homens por mistificarem o papel da mulher, fazendo-o graças à incompreensão que dominava a sua análise da personalidade e dos problemas femininos.
Este fator fez com que o homem a estereotipasse e que a colocasse num lugar abaixo na hierarquia social, acabando esta tendência por se estender às diversas culturas. Por esse motivo é que, nas mesmas, a ascensão de uma mulher nos escalões da sociedade gerava alguma relutância no indivíduo masculino. Em suma, a francesa defendeu que a mulher se antecipasse a partir do valor intrínseco feminino, valorizando as suas particularidades e desprezando o retrato abjeto perpetuado por aqueles que descreviam os casos de mulheres bem-sucedidas. A autonomia da mulher foi, a partir deste marcante momento, sendo alimentada e as manifestações não tardaram, vindo a predominar nas décadas sucessivas. O seu papel de feminista, apesar de ainda não totalmente cumprido, para lá caminha.
“What is a woman?’ […] The fact that I ask it is in itself significant. A man would never get the notion of writing a book on the peculiar situation of the human male. But if I wish to define myself, I must first of all say: ‘I am a woman’; on this truth must be based all further discussion. A man never begins by presenting himself as an individual of a certain sex; it goes without saying that he is a man. […] It would be out of the question to reply: ‘And you think the contrary because you are a man,’ for it is understood that the fact of being a man is no peculiarity.”
Por fim, dentro do lote das suas obras mais mediáticas, Simone de Beauvoir escreveu, em 1954, “Les Mandarins”. Enquadrando-se no estilo roman à clef (pormenores fictícios mesclam-se com uma linha condutora primordialmente realista), é um conto que retrata o núcleo de intelectuais que se formou no pós-Segunda Guerra Mundial. O título transporta consigo uma carga simbólica interessante, referindo-se aos mandarins que orientavam a governança diária na era imperialista chinesa e que pontificavam pelo valor moral que lhes era inerente. É precisamente essa moralidade individual, para além dos habituais temas existencialistas e feministas, que é retratada nesta história. O poder literário da autora repercute-se no momento em que decide conjugar a dimensão sociopolítica e a intelectual, desenhando ligações pormenorizadas e profundas entre as personagens envolvidas. Os protagonistas (Henri, Robert e Anne) presumivelmente correspondem a, respetivamente, Camus, Sartre e De Beauvoir.
Simone De Beauvoir, até 1986, ano da sua morte, nunca prescindiu de registar o que pensava e o que a apoquentava. Viu partir os seus companheiros de serão e de vida mas não foram essas rudes perdas que lhe retiraram a motivação pela intervenção. Por imutáveis crenças e por palavras imensas foi constituída a francesa. Partilhou filosofias de vida e de pensamento com Sartre, contactou com as vicissitudes sociais do seu país e foi até galardoada pelas suas peças literárias. No entanto, o que essencialmente importa não são os prémios mas sim a grandeza das teorias, das ideias, das perspetivas e das ações. A vida de Simone não foi vivida desprovida destas. Mentes acordaram, olhos despertaram e corações abriram. Simone de Beauvoir, uma daquelas que acreditava na existência antes da essência, foi mais além. Fez da existência e da essência eternas e isso reflete-se nas voltas e mais voltas que a sociedade lá dá. Voltas essas que visam os três valores tão apregoados pelos gauleses: igualdade, fraternidade e liberdade. Simone de Beauvoir foi tudo isso e continua a ser. Na verdade, Simone é existência, essência e transcendência.