NOS Alive 2018: um arranque 4 estrelas (em 5)
O céu nublado ainda ameaçara chuviscos, mas acabou por ser com rasgos de sol que o NOS Alive 2018 deu o pontapé de saída da edição deste ano. Entre o público, muitas t-shirts dos Arctic Monkeys, os cabeças-de-cartaz do dia, que viriam a encher a plateia do palco principal pela meia-noite. A encher… demasiado?, ousamos perguntar. O tempo de escoamento em hora de ponta é demorado; a zona central de passagem entre os palcos e de acesso às casas de banho sofre, de ano para ano, do mesmo problema (que não é de somenos), tornando-se muito difícil circular pelo recinto e usufruir dos horários dos vários concertos – para não referir a própria segurança. Mas vamos falar de música – o grande trunfo do festival é a quantidade de grandes nomes que preenchem cada dia. Esta quinta-feira inaugural, 12 de Julho, não foi excepção.
Ainda antes do pôr-do-sol, Bryan Ferry animou o Palco NOS com uma big band de nove músicos. O frontman dos Roxy Music, banda de glam rock que ajudou a escrever a história do género no início dos anos 70, resgatou um grande número de canções do catálogo antigo do colectivo. O concerto de Ferry, para além de ter instalado um ambiente de descontracção no recinto, com corpos a balançarem animadamente e muitos sorrisos principalmente entre os ouvintes mais velhos, foi ainda um atestado de qualidade ao som do palco. Distinguiam-se bem os vários instrumentos – o saxofone e o clarinete cuja presença se impôs, a violinista que adornou as melodias, a guitarra límpida. E qualquer coisa no jeito da voz de Ferry, e no arranjo das canções, parecia evocar David Bowie – seu contemporâneo. Não seria a última vez na noite que nos lembraríamos dele. Destaque ainda para “Slave to Love”, um daqueles temas históricos que toda a gente conhece, sabe trautear, mas poucos identificam o autor. Alguém atrás de nós dizia: “nunca esperei vir a ouvir ao vivo esta música”. Um festival também se faz destas agradáveis surpresas.
Minutos depois, começava no Palco Sagres a actuação dos Wolf Alice. Foi um dos momentos mais surpreendentemente calorosos da noite – a banda voltou ao palco que já tinha pisado em 2016, na única visita que fizera ao nosso país. Mas, claramente, já angariou um grande grupo de ouvintes fervorosos. A tenda coberta estava repleta às oito da noite, sendo difícil entrar lá para dentro para desfrutar do concerto. Ellie Rowsell alternava entre um estilo vocal mais virado para a spoken word e uma performance cantada com emoção. Embora às primeiras canções a sonoridade se tivesse apresentada um pouco mais extravagante e algo datada, demos por nós a apreciar progressivamente mais o concerto, com um crescendo da qualidade das harmonias e dos arranjos. A ovação do público – intense e sincera – não deixava enganar, e os Wolf Alice sentiram-no do palco: o público presente não deixou de retribuir à banda a boa energia que recebeu.
Provavelmente o concerto da noite. Depois de quase dez anos longe dos palcos portugueses foi através das portas do Alive que a banda de Trent Reznor marcou o seu regresso. E que regresso. Os Nine Inch Nails foram iguais a si mesmos: enérgicos, de pouca interação com o público (já lá chegaremos a esta questão) mas com um historial musical para mostrar e uma competência ímpar na condução de todas as componentes do concerto, quer auditivas, quer visuais. Com uma transmissão em directo a preto e branco para os ecrãs gigantes do palco, com imagens a roçar o cru que a banda tantas vezes nos habituou nos seus álbuns e jogo de luzes, os muitos fãs da banda não puderam sair desiludidos, mesmo com o pouco tempo dado à mesma e que obviamente terá limitado – como não é caso único – a disponibilidade para interagir com o público.
Perdidos num horário que em nada lhes faz jus à história, nem muito menos à qualidade, a influente banda estadunidense não se deixou afetar e trouxe um pouco do reportório que tem levado (enquanto cabeça de cartaz) por todos os festivais na sua tour. Destaque para o facto de terem tocado “Closer”, “The Hand That Feeds” e a acabar em beleza com “Hurt” (para alguns no público, “a música do Johnny Cash” – nada mais errado), além de terem também trazido ao Passeio Marítimo de Algés músicas mais recentes como “God Break Down The Door”, do seu mais recente álbum Bad Witch e a cover de “I’m Afraid of Americans”, do “influente amigo seu” David Bowie (foi efectivamente uma noite com sabor a Bowie). Concerto com “C” grande, que merecia um público mais direcionado, mas sobretudo um horário mais condizente com a sua qualidade.
Embora só tenhamos assistido à segunda metade do concerto de Papillon, vindos da explosão sónica e visual dos NIN, foi quanto bastou para entendermos o fenómeno que gira à volta do rapper que Slow J ajudou a lançar este ano. E adivinhem quem acabou mesmo por marcar presença, de surpresa, do jeito humilde que já se tornou um símbolo na sua pessoa… sim, o próprio Slow. Não foi o único. Outros convidados foram pisando o palco, que Papi transformou numa festa colectiva. Um concerto em que as rimas mais intimistas também tiveram o seu lugar; mas em que não deixámos de nos pôr aos saltos! Papillon conseguiu fazer do Palco NOS Clubing uma festa muito familiar, com uma escala humana muito simpática – ambiente nem sempre fácil de recriar no NOS Alive. Destaque para o acompanhamento ao vivo (bateria e guitarra): a performance instrumental na hora tem muito para dar ao hip hop, e é de louvar quando os rappers decidem investir nessa vertente. Os apontamentos da guitarra, particularmente, ajudaram a fazer a diferença – e o momento com Slow J também o provou.
Foi para uma audiência parcialmente desinteressada que os Friendly Fires destilaram o seu indie pop dançável e altamente rítmico – algo comprovado pela presença de três pessoas em palco cujo trabalho era bater em tambores ou outros elementos percussivos. A banda deu-nos o seu melhor, mas tanto a qualidade de som que deixou a desejar, como a ânsia da maioria da ala da frente por ver Khalid – que actuaria de seguida no mesmo palco – cortaram as vazas a um concerto que podia ter sido uma celebração muito maior. O alinhamento compôs-se de um chorrilho de êxitos, abrindo logo com “Lovesick”, “Jump in the Pool” e “Skeleton Boy”, do primeiro álbum. Quando entrámos na fase de Pala – o segundo álbum – os pormenores tropicais da sua música já se conseguiam discernir melhor, permitindo ao público desfrutar da bela “Hurting”, das canções mais celebradas. Por entre essas canções, houve espaço para o mais recente hit de Verão da banda: “Love Like Waves”; cujo crescendo emocional e rítmico também não passou despercebido. O concerto culminou em “Kiss of Life”, uma das canções mais reconhecidas do grupo, que foi prolongada até um clímax épico, colmatado pela fabulosa dança do vocalista Ed Macfarlane que, de resto, se dedica sempre aos concertos dos Friendly Fires de corpo e alma. Talvez com esse beijo da vida tenham conquistado mais alguns corações do público, mas a continuação deste namoro musical terá de ficar para um eventual regresso a terras lusas.
Os Snow Patrol vieram dar ainda mais calor a uma noite que ainda se adivinhava longa e que viria a ser adocicada por “Chocolate”, canção que a banda deu a conhecer em 2003. Tratou-se de um concerto algo curto, onde apenas foram apresentadas onze canções, sendo que apenas duas delas (“Don’t Give In” e “Empress”) eram do álbum Wildness lançado em Maio deste ano. Mas ainda assim os Snow Patrol conseguiram ter a ovação de um público que se mostrava bastante enternecedor, e que recebeu calorosamente os clássicos “Run”, “Chasing Cars” e “Called Out in the Dark”, conferindo coros vocais intensos que deixariam o vocalista Gary Lightbody grato. Uma plateia enérgica que ajudou a intensificar um espectáculo que ainda teria muito para durar.
Chegou por fim o momento mais aguardado da noite para a maioria dos festivaleiros. Os Arctic Monkeys entraram no palco ao som dos primeiros acordes psicadélicos da introdução de “Four Out Of Five”, o melhor single do mais recente trabalho da banda britânica. Com o seu sotaque cerrado, e com roupa e óculos escuros vindos directamente dos anos 70, Alex Turner foi a estrela debaixo dos holofotes. Aliás, nem as imagens que passavam nos ecrãs gigantes revelavam outra coisa, senão a cara e a guitarra do frontman. Não é que não mereça – letrista e compositor de excepção, Turner tornou-se uma lenda ao comando dos Monkeys (nome reduzido com que se apresentaram, nas letras do fundo do palco). Mas, num projecto que já se fala poder estar próximo do fim – Tranquility Base Hotel & Casino esteve na iminência de ser um álbum a solo – a performance no Alive só veio reforçar as teorias de que os contributos da banda têm vindo a tornar-se crescentemente assimétricos. Faltou dinâmica colectiva, houve pouca interacção, e até os característicos coros agudos do baterista tiveram pouco volume na mistura final.
É pena, pois, que o narcisismo propositado que a banda decidiu focar em Turner desequilibre um pouco a energia do grupo e do concerto. Não queremos ser mal interpretados – gostámos do que ouvimos, ou não tivessem os Arctic Monkeys explorado uma boa parte do seu catálogo mais antigo, para deleite de quem os ouvia. Houve lugar para saltos, e até moches – houve intensidade e emotividade na recepção, era visível em quem nos rodeava. Mas talvez ao nível da emissão tenha faltado qualquer coisa, um toque pessoal, mais genuinidade; embora se deduza que muitos outros tiveram uma opinião diferente relativamente ao concerto dos cabeças-de-cartaz. Esperemos que a cortina que constituía o fundo do palco não se feche a curto prazo, porque ainda acreditamos nesta banda.
Mesmo com o concerto dos Arctic Monkeys a sobrepor o início de Sampha, o segundo não ficou sozinho por muito tempo, e ainda bem. Apesar dos inúmeros projectos com artistas de renome em diversos géneros como o rap ou a electrónica, descrever o artista e o seu percurso somente através destas colaborações seria desonesto e muito injusto. Ele fala do passado e do presente em Process, o álbum de estreia; dos sentimentos mais sinceros para com o piano, ou da sensação de ser perseguido num céu coberto de sangue, num mundo perdido. É um artista das cores, e utiliza-as de forma cuidada para cada música, sempre com o seu traje laranja carismático; e, de certa forma, consegue mudar o ambiente de uma forma incrível só com isso, mudando a disposição do público, que quase consegue perceber o que daí vem.
Ao contrário de outros artistas que investem mais no espectáculo de efeitos de luz ou na dança, Sampha nunca deixa de mostrar o melhor que tem: a sua voz, uma das mais delicadas da indústria actual, com a capacidade arrebatar o público a qualquer momento (seja num pequeno concerto da NPR ou no Palco Sagres). Mas, mais do que isso, é um artista completo. Toca precursão, piano, dança e chega ao público num dos últimos concertos da noite que teve momentos de pura euforia entre ritmos e sons electrónicos, e também alturas em que vimos um anjo no palco iluminado, retribuído por um silêncio respeitoso por parte do público.
A festa seguia em simultâneo no Palco NOS Clubing e no Palco Sagres, embora fosse difícil chegar a qualquer um deles em tempo útil, após a enchente do concerto principal da noite. Quando finalmente conseguimos chegar a Orelha Negra, os portugueses estavam a mostrar porque são um dos projectos mais únicos no panorama nacional. A sonoridade expansiva, criativa e envolvente da música do grupo embalava os corpos cansados, mas que ainda queriam sentir mais coisas. Sob o bonito aspecto dos efeitos visuais coloridos, inspirados no visual do mais recente álbum da banda, os Orelha Negra guiaram-nos por paisagens diversas, numa electrónica sensível e humana. Ainda mais do que no concerto de Papillon, os instrumentos ao vivo são absolutamente fulcrais à identidade do som – não se tratam de apontamentos, mas do esqueleto da música. Que viagem.
Por fim, a fechar a noite, assistimos ao DJ Set de SOPHIE no Palco NOS Clubing. Devemos confessar que este era um momento para o qual tínhamos reunido demasiadas expectativas, ou não fosse “Oil of Every Pearls Un-Insides” um dos candidatos a figurar nas listas de melhores álbuns deste ano. Contudo, e embora a assinatura da artista estivesse bem patente em boa parte da performance, vários factores levaram a que a experiência saísse diminuída: primeiro, a curta duração do slot, de apenas quarenta minutos. Depois, o próprio ambiente da tenda, típico de final de noite, em que o álcool acaba por diminuir muito o foco de concentração; muitos já só estavam ali para adiar mais uma hora a ida para casa. Mas não só de factores externos o concerto saiu prejudicado – também SOPHIE parecia algo distante. Tendo optado por fugir à maior parte dos temas dos álbuns, acabou por pôr a passar música, com alguns apontamentos que deram a provar aos presentes o génio da sua autoria, mas sem convencer quem esperava muito mais. “Whole New World / Pretend World” soube a consolação, no fim. Temos contudo de destacar esta imagem poderosa: fixando o público, corpo estático, SOPHIE presentou-nos em alguns momentos com o seu design de som brutalmente violento e ameaçador, com um efeito arrepiante. Não foi o fim de festa que imaginávamos, mas não deixou de ser uma digna apresentação da sua marca ao público português que se dispôs a ficar até ao fim. A festa segue hoje à noite, no Passeio Marítimo de Algés.
Reportagem de Tiago Mendes, com contribuições de Bernardo Crastes, João Estróia, João Pinho e José Malta. Fotografias de Sara Camilo / CCA.