Nós, os animais
Nos últimos anos temos assistido à implementação de algumas políticas de protecção animal, de direitos animais e medidas de sensibilização para a crueldade infligida em animais. Nas caixas de comentários a notícias sobre estes temas é comum assistirmos a reacções como “e então e os velhinhos?” ou “e então e as crianças?”. As medidas são bem recebidas pela maioria da população, mas há uma quanta parte que faz questão de equiparar, com considerável boçalidade, o aumento da protecção animal com um suposto declínio na protecção a humanos. Se os direitos de animais têm de ser algo que só millennials e yogis defendem, não creio. Os direitos de animais são uma questão bastante mais antiga do que possa parecer. Ainda hoje me lembro de ter 6 ou 7 anos e de achar que era “fixe” cortar os bigodes do meu gato, mas este arrojo de cosmética animal não teve a aprovação do meu avô que, sendo ribatejano criador de gado e meticuloso observador das fases da lua para uma matança do porco, só não me bateu porque eu era a mais nova, dizendo que os animais, sejam eles quais forem, são para se respeitar, não são para brincar. O respeito com que os animais eram tratados era o mesmo com que se tratava um prato de comida, não nos sendo permitido, enquanto crianças, infligir qualquer tipo de sofrimento a um animal, tendo esse animal o destino traçado ou não. É possível que o meu avô condenasse também a forma como os animais para abate são tratados actualmente. Pela forma como lhes é infligido sofrimento, como são tratados como coisas inertes, quando sentem dor, quando são seres sencientes, ainda que o meu avô não soubesse, muito provavelmente, o que quer dizer essa palavra.
O Homem constituiu-se sempre como uma entidade superior e exterior ao resto do mundo, uma entidade tão especial que considera que todas as outras criaturas estão à sua inteira disposição.
– em “Arquitecturas de Espécie” de Massimo Filippi na revista Electra 7
A evolução do ser humano passa pela caça, pelo consumo de carne e utilização das peles para vestuário. Na natureza, os animais são predadores, caçam espécies diferentes das suas para sobreviverem, para subsistirem. Os animais, sejam presas, animais de estimação ou selvagens, acompanham desde sempre a História do Homem, em que o homem precisa muito mais dos animais para sobreviver do que os animais precisam do homem. Somos animais predadores, faz parte da nossa natureza e da nossa génese. Mas não somos, ao contrário dos nossos antepassados, sustentáveis no nosso consumo. O excesso de produção, muitas vezes obtido às custas de sofrimento animal ou de desgaste irreversível de recursos naturais, leva-nos ao conforto egoísta de uma vida ocidental, em que não temos de pensar, esforçar, criar, cuidar. Em que fechamos os olhos ao facto de transportamos em condições insalubres os animais que comemos, esfolarmos animais vivos para lhe retirarmos a pele e que ainda rebentarmos fígados de patos vivos para termos aquele foie gras que fica sempre bem para as visitas. O conforto leva-nos ao agradável comodismo de só termos de recolher os alimentos das prateleiras do supermercado, sem pensarmos no percurso. Leva-nos a condenar medidas de limitação de pescas, porque afinal até temos muito mar, sem ligarmos a relatórios que indicam que o pescado é cada vez menor e que a sobrepesca é um problema real. E não, não há nada contra o consumo de carne ou peixe, mas a forma como a carne ou o peixe chegam ao nosso prato tem de ser conhecida e tem de ser repensada.
Há em qualquer ser vivente, em cada bionte (o organismo vivo individual e independente), um mistério originário e uma aura — que muitos não querem ou não conseguem distinguir — que se manifestam com fulgor quando o observamos atentamente no ambiente natural a que pertence.
– em “Dos Animais: Que limites? Que direitos?” de António Bracinha Vieira na revista Electra 7
Saiu recentemente na imprensa um artigo sobre o trabalho num matadouro. Um dos testemunhos de quem lá trabalha foi que “é preciso esquecermo-nos que os animais têm sentimentos”. Também recentemente, numa reportagem do Expresso sobre o Brasil esquecido, Jerónimo, um boiadeiro com as limitações de um interior brasileiro paupérrimo, dizia que “quando matavam alguma vaca nem ia trabalhar, ficava com grande desgosto” e ainda hoje não é capaz de comer carne de vaca”. A organização Sciaena alerta sistemática e diligentemente para a problemática da sobrepesca em mar português e europeu, trabalhando lado a lado com pescadores que reconhecem muitas vezes que o processo não é sustentável. Se tudo isto é considerado uma imbecilidade pelos comentadores profissionais da Internet que condenam a protecção dos animais ou a preservação dos recursos, há factos, pareceres científicos, relatos, testemunhos, bom senso, que indicam que não. Não se pretende abolir e deixar de consumir carne ou peixe, mas promover um consumo sustentável.
Não me recordo de qualquer momento da minha vida em que não tivesse qualquer coisa relacionada com um animal por perto. As crianças têm ursos de peluche, os desenhos animados são cães que falam, gatos que tocam piano, pássaros que dão boleia a crianças, um pato que mergulha num cofre cheio de moedas de ouro, ratos todos rabinos. Sensibilizamo-nos com o “Rei Leão”, temos aquele peluche hipopótamo rosa que a nossa avó nos deu guardado no coração, e vemos centenas de vídeos de animais domésticos a fazerem coisas engraçadas. A atribuição de características humanas a animais, que os comentadores da Internet tanto alegam e criticam quando se apela à protecção dos animais, está enraizada na cultural popular, na literatura e nas nossas vidas. A presença de cães, gatos, periquitos, etc., está directamente relacionada com uma melhoria no bem-estar das pessoas, diminuindo a ansiedade, promovendo a empatia. Os animais, domésticos ou não domésticos, moldam o mundo e os nossos pequenos mundos. Tornam-no melhor, fazem-nos rir, comunicam connosco.
“Cada animal é uma maneira de conhecer um mundo”, disse Jakob von Uexküll, biólogo alemão e muitas vezes referido na revista Electra n.º 7, sobre animais. Cada animal é um mundo. Cada espécie animal é um mundo. Pela hegemonia antrópica, esquecemo-nos muitas vezes que não estamos sozinhos por aqui, que o mundo até pode ser comandado pelo homem, mas é a Natureza que marca o ponto. E é muito possível que eles, os animais, nos sobrevivam, já que não têm a mesma capacidade destrutiva que a raça humana tem. E, enquanto isso acontece, não vale a pena dizer “ah e os velhinhos” porque estaremos todos consciente e irremediavelmente condenados.
A revista Electra é um projeto da Fundação EDP lançado em março de 2018. É uma revista trimestral de pensamento e de crítica, conta exclusivamente com trabalhos originais de pensadores nacionais e estrangeiros. É editada em português e em inglês. A revista é vendida nas bancas, em livrarias, na loja do MAAT e online (aqui).