NOS Primavera Sound (dia 3): a catarse emocional
Para o último dia da edição de 2019 do NOS Primavera Sound, o entusiasmo acumulado finalmente seria libertado quando a personagem maior desta edição — Rosalía, para uma boa parte do público — subisse ao palco. Mas um dia de festival baseado numa única artista não seria muito interessante. Por isso, felizmente, quem foi ao Parque da Cidade do Porto neste dia, foi presenteado com uma série de excelentes concertos que ficarão registados nos palmarés de qualquer uma das edições do Primavera Sound.
A tarde começou ventosa e fria, apesar do sol que havia voltado a despontar, e, na encosta do palco NOS, era difícil encontrar um espacinho verde. Um, porque dois dias de festival haviam fustigado a relva ao ponto de praticamente só restar a terra que lhe dá sustento; dois, porque as mantas de piquenique abundavam, mais do que o número de pessoas que se concentravam em frente ao palco dedicadas ao concerto de Hop Along. A banda de indie rock de Filadélfia dava ares de rock californiano, com as suas melodias soalheiras e algum fuzz para acompanhar viagens ao longo da Costa Oeste dos Estados Unidos. Os ritmos assentavam que nem uma luva no nome da banda, incitando o público que estava em pé a saltitar ao seu compasso. Por cima dessa base, a vocalista Frances Quinlan fazia malabarismo vocais, entre um sing-along doce e rosnidos poderosos, por vezes estridentes. Entre canções, Frances fez questão de salientar a forte presença feminina no cartaz, o que nos fez pôr o cartaz em perspectiva e aplaudir a plataforma que a organização deu à música que se faz no feminino, para resultados bem positivos.
No entanto, de seguida fomos para algo no outro lado do espectro. Os Viagra Boys são uma banda sueca que vem na senda do revivalismo punk de bandas como os Idles ou Fontaines D.C., com música com muita agressão auditiva e um vocalista carismático. No entanto, o carisma deste espectáculo viu-se um pouco dependente da vodka que Sebastian Murphy ia consumindo, à medida que rebolava pelo chão do palco e gritava profanidades para o microfone, sobre os ritmos dançáveis que o resto da banda produzia, quase ignorando o deboche que Murphy exercitava. Saxofone, muito ruído e uma kick drum bem afiada compunham o espírito punk dos Viagra Boys, que ia cativando uma boa quantidade de público, concentrado em fazer algum headbanging e mexer os pés.
Quando os Big Thief nos visitaram pela primeira vez, no ano passado, em Paredes de Coura, o guitarrista Buck Meek estava doente e não pôde actuar. Na altura, Adrianne Lenker fez tudo sozinha, num inspirado improviso em que desdobrou a sua guitarra em duas, com arranjos que tinham sabor a momento único. Por isso, em abono da verdade, ontem foi a primeira vez que ouvimos o som completo dos Big Thief, com a dinâmica preciosa das guitarras de Meek e Lenker. Os músicos passearam-se por entre canções dos seus dois primeiros álbuns, assim como outras ainda não editadas em nenhum trabalho de estúdio. Escolheram interpretar apenas uma do seu mais recente, U.F.O.F. (um dos melhores álbuns que este ano viu nascer, até agora); mas os concertos dos Big Thief são assim mesmo – inesperados, com setlists pouco fixas, muito guiadas pela intuição da maestrina Adrianne.
Se em Paredes nós tínhamos sentido praticamente asfixiados pela transparência da alma da vocalista, ontem chamou-nos mais a atenção a comunhão entre todos os membros da banda. O baterista, de olhos postos em Lenker todo o tempo, parece estar a ter o melhor dia da sua vida. A música dos Big Thief não parece ser inteiramente deste mundo, e há nela maneirismos alienígenas que parecem roçar uma pureza original. O público ouviu-os sabendo respeitar os silêncios. Foi um final de tarde encantado, momento de catarse oferecido por uma das bandas que mais vai marcar a próxima década na música. Vocês leram aqui primeiro.
Após algo tão emocional, decidimos aligeirar um pouco a coisa com um pouco de calor brasileiro. No palco NOS, actuava Jorge Ben Jor, um monstro da tropicália, bossa nova, samba e todos esses epítetos que descrevem a música brasileira da metade do século passado. Apesar do seu silêncio editorial nos últimos anos, voltou aos palcos para nos recordar dos seus grandes êxitos, como é “Mas Que Nada”, durante a qual era difícil não ver público a cantar o seu refrão incontornável. A sua voz rouca continua a acompanhar perfeitamente o samba rock em que se move, género cujos ramos se estendem a muitos outros reinos da música, como até o ritmo reggae de “Bebete Vãobora”. Apesar do estatuto do artista, este dia era tão recheado de nomes de qualidade, que tivemos de ir para outras paragens.
No isolamento do palco Pull&Bear, recebemos a banda de indie rock de Baltimore, Snail Mail. Todos os anos há pelo menos uma banda-fenómeno desse género já tão requentado. Em 2018, possivelmente terão sido os meninos queridos da crítica musical, graças ao álbum Lush. Este é o projecto de Lindsey Jordan, que, do fundo dos seus tenros 19 anos (!), compôs um álbum de letras emocionalmente maduras e melodias melancólicas que captaram o coração daqueles que admiram a música de guitarras feita nos anos 90. Ao vivo, nota-se a qualidade técnica e melódica, que nos mantém atentos ao que se passa em palco, assim como o timbre jovial, mas emocionante — com direito a quebras vocais tão genuínas, como desarmantes — de Lindsey. No entanto, não passou de um concerto consistente para algo que realmente nos comovesse. É então que, após ouvirmos “Slug”, vamos preparar-nos para o evento do festival.
Nunca antes havíamos visto algo semelhante ocorrer no NOS Primavera Sound. Uma hora antes do concerto de Rosalía, já havia um bom aglomerado de gente plantado em frente ao palco, à espera da artista espanhola que se atreveu a fazer colidir os mundos do flamenco e da electrónica, para aclamação quase universal. O público não parou de chegar até ao início do concerto, que se deu à hora marcada, para aproveitar o máximo de tempo alocado para o seu espectáculo perfeitamente coreografado e equilibrado. Nós não vimos outra hipótese senão plantarmo-nos também o mais próximo do fenómeno, para termos noção de toda a sua magnitude.
O êxtase não demorou a chegar, pois o concerto abriu logo com um dos grandes singles que nos deu a conhecer El Mal Querer, o projecto que caiu como uma bomba no ano passado. “Pienso en tu Mirá” foi acompanhada inteiramente pelos fãs, que replicavam palmas, letras e todos os ad-libs que caracterizam o seu universo musical. Por vezes, o som que saía do palco não chegava para abafar o público. Apenas isso seria suficiente para tornar isto numa experiência entusiasmante, mas também Rosalía correspondeu às expectativas. A artista navegou pelas suas canções (e pelas de outros) com uma confiança impressionante, de quem abraçou o reconhecimento de que é alvo com uma maior vontade de se superar e provar que o merece na totalidade. Assim, dançava em sincronia com as suas dançarinas, ao mesmo tempo que cantava com o tom emocional que lhe reconhecemos — nunca perfeito, mas sim humano. Humana também foi a sua gratidão genuína ao público do Porto, a quem queria saber falar em português, mas cujo “obrigado” nos encheu o peito.
Quando fomos confrontados com o contraste entre os sintetizadores futuristas da primeira metade de “Maldición” e a sua segunda metade vocal que deve ao tom mais clássico do flamenco, sentimo-nos gratos por existir música assim, que soa original, mas ao mesmo tempo tão natural, e surpreende-nos que alguém não tenha pensado em fazê-la antes. Depois, não basta apenas a música ser verdadeiramente pioneira, como também consegue ser desfrutada a um nível mais visceral, como prova o ritmo dançável de “Di Mi Nombre”. E, mesmo quando não é propriamente pioneira, as suas qualidades de entretenimento são louváveis, como prova a versão superior de “Con Altura”, que já havíamos ouvido no concerto de J Balvin, mas à qual faltava o braggadoccio do momento de Rosalía. A batida profunda de “Malamente” traz o fim do concerto, exactamente uma hora depois de ter começado. Assistimos a um produto, mas daqueles cuja qualidade nos faz sentir que valeu a pena.
Depois do turbilhão de Rosalía, fomos para o palco Super Bock para vermos os veteranos Low. A banda, formada em 1993 no estado do Minnesota, apresentou-se em contraluz, como se fosse o crepúsculo perfeito para um dia movimentado. E foi. Com um dos melhores álbuns de 2018 em mãos, Double Negative, os Low agraciaram-nos com um dos melhores — e para muitos o melhor — concertos da edição deste ano do NOS Primavera Sound. A cadência da linha de baixo e da bateria, minimalista, e as distorções da guitarra criaram um bloco de som que nos transportou para uma sala onde parecíamos estar só nós e a banda. E, por muito foleira que esta descrição possa parecer, em “Do You Know How to Waltz”, as vibrações entravam-nos no corpo e fizeram-nos sentir cada músculo, cada emoção, cada sensação, física ou metafísica, quase transcendental e hipnótica. Muitas vezes falamos da impessoalidade dos festivais, mas a magnitude dos Low foi, provavelmente, do mais intimista que já vivemos num ambiente festivaleiro.
Ao mesmo tempo, no palco SEAT, experienciava-se um outro tipo de intimismo: aquele que se poderia ter numa discoteca underground berlinense, aqui exacerbado para encher um dos maiores palcos do festival. Os Modeselektor voltaram às suas origens com o disco Who Else e a sua música nunca soou tão crua, granular e entusiasmante, algo que ficou provado nesta actuação fogosa. O baixo do beat de “Wealth” e o flow da rapper londrina Flohio fizeram sentir-se nos corpos do público, que se aquecia serpenteando-se. Aliás, não se via quase ninguém sentado nas bancadas que ladeavam o palco. O duo soube usar bem os seus trunfos, como no prolongamento do clímax da explosiva “Prügelknabe”. Os efeitos visuais pixelizados acompanharam bem a actuação, dando à música um acompanhamento muito conciso que completava a sua precisão digital. Se isto foi assim num ambiente tão amplo, nem imaginamos como será no ambiente para o qual foi idealizado.
O plano inicial era começar o final da noite com Erykah Badu e depois seguir para o final de Yves Tumor, mas um atraso algo exagerado da diva do R&B fez-nos repensar essa decisão. Parecia destinado, pois acabámos por não conseguir arredar pé do hipnotizante concerto de Yves Tumor. Foi uma hora de um rock futurista, abrasivo e mergulhado em ruído. Normalmente, acharíamos uma mistura de som assim gritantemente má, mas ali soou absolutamente perfeita — música para o apocalipse, para o caos dos tempos modernos, para um futuro em que somos todos surdos por ouvirmos tanta música e apenas saberemos distinguir sons se estiverem no meio do ruído. O vocalista e mastermind Sean — que partilha o apelido com o astro David Bowie —, move-se freneticamente em palco ou no meio do público, envergando a sua indumentária de pele, com a atitude de um rockstar alienígena. “Licking an Orchid” foi o momento sensual S&M, o pedido de ajuda de “Noid” soou especialmente urgente e “Lifetime” fechou o concerto com a catarse emocional que a acumulação de ruído precisava. Foi intenso e muito, mas muito bom.
Quando chegamos ao concerto de Erykah Badu, apercebemo-nos de que é uma grande jam session com canções da artista pelo meio. Durante as músicas, a sua voz sedosa conduz-nos por entre as guitarras e baixo que pulsam, despoletando instintos sensoriais e sensuais, em canções como “Appletree” ou “Next Lifetime”; entre elas, somos guiados na igreja de Badu, que comanda o público com confiança nas suas deambulações espirituais ou sedutoras. Perto do final, como uma espécie de compensação pelo atraso (“obrigado por esperarem por mim”, ouvimos a certa altura), Erykah explora o poço entre palco e público, dando mãos, cantando, tentando tirar fotos com uma Polaroid alheia (hilariantemente) e até tentando seduzir o cameraman com uma das suas canções, num momento tão divertido, que instantaneamente ficámos caídos pelos seus olhos cor de mel, a olhar-nos através dos ecrãs gigantes; como se não bastasse a sua voz que, já de si, desliza como mel.
Os três dias de festival já pesavam nas pernas, por isso decidimos concluir a nossa jornada com o concerto de Mykki Blanco, residente lisboeta que cuspiu o seu rap interventivo com muita intensidade, por entre beats mais ou menos dançáveis. Na maior parte do tempo, pudemos encontrar Mykki no meio do público, a dar trabalho redobrado aos seguranças. A sua intenção pareceu ser incluir toda a gente na experiência que é um espectáculo seu, como se pôde comprovar pelo seu discurso inclusivo que ataca comportamentos discriminatórios, mas que também reduz a comercialização da luta da cultura queer, um tópico bastante pertinente neste que é o mês do Orgulho LGBT+. No final, afastámos todas estas questões dançando no “club Mykki”, com ritmos fornecidos pela DJ Lisa naquele que foi o final do concerto.
Quem ainda se sentiu com força para tal, terá ido ver a bastante celebrada Nina Kraviz. Nós ficámos a descansar as pernas e a absorver os últimos momentos de mais uns dias passados no Parque da Cidade, ao som de alguma da melhor música feita hoje em dia. No final, apesar de todas as controvérsias e críticas, o festival voltou a comprovar a sua qualidade com uma edição consistente na sua variedade. Para o ano, já temos o regresso dos Pavement confirmado, assim como o da Comunidade Cultura e Arte.
Texto escrito com contribuições de Tiago Mendes e Linda Formiga.