O Cais da Europa assinala os 136 anos do Porto de Lisboa com livro de Ferreira Fernandes e mural de Vhils
Os 136 anos que o Porto de Lisboa agora celebra estão repletos de histórias. Da monarquia à república, passando pelos conturbados anos da 1.ª República, pela austeridade da ditadura, pela revolução, pela entrada na CEE e pelo crescente rebuliço do transporte marítimo e de mercadorias e de pessoas. Voltado para o presente e para o futuro, o “porto que se fez cidade e que liga Lisboa ao mundo”, nas palavras de Carlos Correia e Ricardo Roque dos Conselhos de Administração, quer relembrar, homenagear e informar o passado de um porto que serviu e serve de passagem para todo o mundo.
Tempos houve em que o Porto de Lisboa foi ponto de saída para milhares de judeus, fugidos da 2.ª Guerra Mundial e, muitos deles, com visto de autorização assinado pelo cônsul português em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes. Foi para assinalar esta passagem de milhares de refugiados que o Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra edita o Volume III dos Cadernos do Arquivo “O Cais da Europa: Roger Kahan – Refugiado, Fotógrafo, 1940” da autoria de Ferreira Fernandes, jornalista da Mensagem de Lisboa. Na capa, a fotografia de Roger Kahan de uma mulher sentada, com malas, junto ao marco de correio, que ainda hoje existe, tirada a 4 de Outubro de 1940. Nada se sabe sobre a mulher, nem de onde veio nem para onde foi, e pouco se sabe (ou sabia) sobre Roger Kahan, o fotógrafo judeu, também refugiado, mas foi com esta fotografia que Ferreira Fernandes partiu para a pesquisa de como era Lisboa num dos períodos mais negros da História da Humanidade. Neste livro podemos ver fotografias, cartazes, propaganda, recortes de jornais, bilhetes carimbados. Lemos a história de Roger Kahan, de quem o poderá ter salvado, por onde passou e viveu.
À data não existia um monumento em Lisboa que assinalasse a passagem dos milhares de refugiados por Lisboa e é aqui que Roger Kahan se cruza novamente com a mulher do marco de correio, com a publicação do livro da sua vida e com a reinvenção da sua fotografia no mural de Vhils, nas traseiras da casa abandonada, de frente para o rio, intitulado “O Cais da Europa: Roger Kahan e a homenagem aos refugiados da Segunda Guerra Mundial”. A técnica usada para a instalação de Vhils foi já aplicada num mural do Festival Iminente no ano passado. Através de uma tinta, com recurso a videomapping e com a própria interacção da tinta com a superfície, a tinta absorve e transforma-se com o tempo. O mural é, metaforicamente e pela forma de aplicação, uma representação da passagem do tempo, de como se transforma, adapta e se apresenta.
Com a dedicação do jornal local Mensagem de Lisboa, a história dos Portos de Lisboa e de Vhils, artista “de rua”, de um olhar aguçado pelas vivências de quem vive nos espaços urbanos, este livro e este mural curam-nos, nas palavras de Ferreira Fernandes, “da ingratidão e da falta de memória“. Quis o acaso que estas últimas semanas fossem marcadas pelo aumento do antissemitismo e pelo ódio ao próximo devido ao credo que professa. Lisboa e as suas gentes, na sua multiculturalidade centenária, tem o dever de, como referiu Carlos Moedas na apresentação do livro, “combater o racismo todos os dias“. Esta homenagem e este tributo poderão parecer extemporâneos, mas deverão relembrar-nos dos dramas bastante reais e actuais que milhares de pessoas que imigram, emigram, são expulsos de suas casas por fundos sem rosto, vivem em camaratas, no limite da dignidade humana e da razoabilidade.