‘O Cinema’, dos Artistas Unidos, espelha os nossos becos sem saída
Por algum motivo o texto de Annie Baker vencera o Pulitzer em 2014. A produção dos Artistas Unidos vem justificá-lo de uma forma efectiva e afectiva, numa peça que esgravata as rotinas e o quotidiano, e reflecte a procura da identidade e os becos sem saída de cada um. «O Cinema» é um espectáculo que, sem abandonar um mesmo espaço físico, nos confronta com o muito e o pouco que nos prende uns aos outros.
Ao entrarmos na sala, uma sensação de confusão. Temos duas plateias, viradas de frente uma para a outra. Vamos ser espectadores dos espectadores do cinema, pensamos. Quase certo. As personagens são os três trabalhadores de um cinema da província. Passam os dias, os meses, os anos, em tarefas aparentemente repititivas, mas com alguma ciência e filosofia envolvidas. Há questões em aberto, factos consumados, inquietações, que rodeiam as pipocas no chão, os refrigerantes abandonados, ou a mancha na mousse de chocolate com tapioca que nem sequer devia estar ali.
A limpeza da sala, tranversal do princípio ao fim da peça, é apenas um pretexto para mergulharmos em cada uma das cabeças das três personagens. Cada qual com os seus bloqueios, evidenciados por gestos ou ausência deles, por palavras ou silêncios, por confissões privadas a que temos o previlégio de assistir. É uma rede de apenas três pessoas: mas há segredos que só Sam e Avery conhecem, há momentos que apenas Rose e Avery experimentaram, e diálogos que ninguém além de Rose e Sam virão a saber. Nós somos priveligiados. A partir de muitas centenas de pipocas, largas dezenas de referências à história do cinema, e apenas três actores em palco (e um quarto, próximo do final), assistimos a episódios de insegurança, partilha e expectativa. De vida. Tal como ela é; incontornável.
Se António Simão e Bruno Huca protagonizam momentos muito bem conseguidos de profundidade emocional, somos obrigados a destacar o trabalho de palco de Rita Cabaço. Desde a sua primeira cena que transmite uma estranha energia que desacomoda o espectador; exacerbada, talvez, pelo facto de ser a personagem mais misteriosa, cujos becos sem saída psicológicos acabamos por não compreender (se nem ela própria se entende!). As respirações e os gestos têm detalhes que arrepiam, porque convencem de forma impactante. Em conjunto, os três conseguem construir o carrocel narrativo e emotivo que nos conduz da desconfiança à confiança, e, posteriormente, da confiança à desconexão. Comunhão e competição: dois estados que não se anulam, alternada ou simultaneamente. Tudo isto envolto em panos que bem conhecemos, ingredientes das nossas relações: a dúvida, a incompreensão, o egoísmo e a procura de um sentido. O valor do dinheiro, da segurança, da amizade, do medo e do amor.
O trabalho de encenação de Pedro Carraca reflecte a riqueza que as movimentações em palco significam para o todo. Num cenário estático de cadeiras colocadas em longas filas, a geografia interna é determinante na ilustração do subtexto. De costas voltadas ou com um vidro entre nós, com as pernas em cima dos encostos ou reclinados de forma rígida no assento. O espaço importa, é uma outra personagem, que une as histórias e as ajuda a comunicar.
Uma simples e impressionante produção dos Artistas Unidos, que pode ser vista no Teatro da Politécnica até dia 3 de Junho. São duas horas e meias de espectáculo, mas não parecem. Estamos entretidos por uma estrutura interna que, sendo simples e relativamente linear, resulta e nos conquista. A vida também acontece nas horas perdidas, e ganhas, a varrer pipocas numa sala de cinema – ou a ver alguém varrê-las. Afinal, fomos espectadores de nós próprios. Quando o filme dos outros termina, pode ser o momento de o nosso começar. O mundo é um estranho cinema, e a verdade é que estamos todos a tentar.
Fotografias de Jorge Gonçalves