“O Crime do Padre Amaro”: à boa maneira portuguesa, o delito esconde-se e tudo continua

por Ana Monteiro Fernandes,    6 Março, 2023
“O Crime do Padre Amaro”: à boa maneira portuguesa, o delito esconde-se e tudo continua
Série “O Crime do Padre Amaro” da RTP1 / Fotografia de Pedro Pina – RTP

O Crime do Padre Amaro ganhou nova série na RTP1 e, depois do filme mexicano estrelado por Gael Garcia Bernal, de 2002, e o filme português, de 2005, realizado por Carlos Coelho da Silva, que adaptaram o enredo para os tempos recentes, fazia falta uma série de época sobre o livro de Eça de Queiroz que ainda faz correr muita tinta.

Independentemente das críticas que a nova série, O Crime do Padre Amaro, da RTP1, possa ter recebido, fiquei contente pelo facto de a adaptação ter sido mais fiel ao livro por uma razão, ter deixado transparecer, além do erotismo presente, já sobejamente retratado pelos dois filmes anteriores — mais no filme português do que no mexicano, é certo — a verdadeira crítica que Eça de Queiroz quereria fazer e que ainda pode ser feita nos tempos modernos. A obra não funciona, somente, como uma crítica ao celibato da Igreja Católica, nem tampouco é, apenas, uma história de um amor romântico impossível e as provações e dúvidas de um padre. É simplista olhar as coisas dessa forma! O que Eça de Queiroz faz é servir-se da Igreja Católica para espelhar a realidade portuguesa tal como sempre funcionou, e a Igreja, claro, bebe do mesmo pecado e funciona da mesma forma. E se esta conjugação entre Religião Católica e portugalidade funciona tão bem, talvez seja pelo facto de as histórias das duas instituições — país e Igreja — terem estado sempre ligadas. Aconteceu algo, o que é que se faz? Encolhe-se os ombros, atira-se o pó para debaixo do tapete e pronto, “lá vamos andando” de uma forma ou de outra. O que no início dos dramalhões de Eça Queiroz parece ser forte, exacerbado, escandaloso, impossível de superar, chega-se ao fim e consta-se, afinal, que não, que tudo pode continuar porque nada foi assim tão forte, nem o amor, e a santa instituição prossegue. Neste pendor, Os Maias e O Crime do Padre Amaro têm uma estratégia semelhante a nível da narrativa. Ora vejamos: dois escândalos, dois amores arrebatadores impossíveis e, no fim, basta um ir-se embora ou desaparecer — o delito — e tudo prossegue.

Série “O Crime do Padre Amaro” da RTP1 / Fotografia de Pedro Pina – RTP

Há algo em Eça de Queiroz que não está assim tão bem explicado. É verdade que o escritor começou no romantismo mas, depois, não é tão verdade que tenha enveredado pelo realismo puro, pelo menos nestes dois livros, especialmente em O Crime do Padre Amaro, tido como a sua primeira obra precursora do realismo/naturalismo. No máximo, pode-se dizer que o que faz é uma caricatura desse mesmo romantismo, para depois o corromper por completo, o que é algo um pouco diferente. Tanto pelas histórias impactantes, o tom afectado de algumas falas, como as descrições da luz dos espaços, a caricatura do romantismo está sempre presente, usando-se até o enredo principal para esse efeito. Ou seja, há uma caricatura que é feita pondo-se, sempre, lado a lado, as duas vertentes: o estilo passado do romantismo do qual Eça de Queiroz sai e no qual coloca, de forma caricatural, o cerne do enredo e, depois, a seu lado como possível escolha, o modernismo da ciência, o progressismo e o avanço dos valores sociais. Em certa medida, é como se fizesse lembrar o que, no resto da Europa, viria a ser a oposição entre Civilization e Kultur, e como estes dois conceitos se desdenhavam entre si. Por essa razão é que é interessante esta ser uma série de época com um final mais parecido com o livro — embora, sim, nunca esquecendo que estamos a falar de uma mini-série — porque coloca em evidência como, no final, a Amélia oscila entre a manipulação maniqueísta, escura e doentia que lhe dava pesadelos, personificada pelo romantismo do Padre Amaro, que acreditava ser o seu grande amor impossível; as conversas com o médico que a assistia a si e à sua madrinha, personificando o lado progressista e da ciência, e o abade Ferrão, o único religioso com conduta moral digna e aberta mas, mesmo assim, com uma visão religiosa. No último episódio da série há mesmo um diálogo entre o médico e o abade em que os dois contrapõem a visão religiosa e científica. No final, atira o médico ao abade, “a verdade é que o homem sempre teve necessidade de acreditar nos santos, acreditar num Deus, acreditar nas pedras, acreditar no sol. Sabe porquê? Para não se sentir sozinho.”

Acontece que o grande azar de Amélia foi ter estado, sempre, no epicentro destas duas escolhas. Ora vejamos: numa primeira fase há a oposição do amor soturno do padre Amaro e o amor que o progressista João Eduardo poderia dar, uma vez que este queria libertar Amélia da opacidade do meio em que vivia. Este chega mesmo a denunciar, no jornal, a perfídia do clero, tendo como foco Amaro. Há uma visão mais liberal e, depois, Amaro, que consegue Amélia mas, o que no início parecia ser apenas amor proibido e a tentação de um padre em dúvidas com o seu voto celibatário, vemos que é mais do que isso. Padre Amaro sabe que apesar de não ter seguido o seu sacerdócio por vocação; apesar das suas dúvidas e maldizer da sua má sorte em ter sido atirado para o seminário; apesar ter desejado ter sido livre para possuir Amélia, nunca irá deixar de ser padre, nem nunca deixará a comodidade da sua vida por ela. Depois, numa última fase, quando Amélia é escondida para ter a sua criança “sem escândalo”, também aí surge dividida entre as conversas com o médico e as conversas do Abade Ferrão e, mais uma vez, mesmo que em pensamento, é-lhe colocada à frente a oposição do amor de Amaro e o que poderia ter sido o amor de João Eduardo. Uma vez mais, a escolha entre um conservadorismo que iria significar o seu fim, em dicotomia com o progressismo.

Série “O Crime do Padre Amaro” da RTP1 / Fotografia de Volf Entertainment

No início, o que poderia ser a promessa de um amor proibido mas comprometido e belo desfez-se ante o cinismo e desejo de posse de Amaro. Assim sendo, Amélia sucumbe perante a promessa romântica do que seria um amor belo e afectado e poder-se-ia dizer que morre por esse amor, mas não. Aqui, neste ponto, é que surge a grande crítica de Eça de Queiroz: o escritor serve-se de uma trama à luz do romantismo para dar a sua estocada final no género, ao mesmo tempo que lança a sua crítica realista. Aí é que surge a diferença — no fundo, a caricatura está lá e nunca é abandonada. A verdade é que Portugal, em duas velocidades, com a vertente progressista e conservadora, ainda não está preparado para avançar, evoluir ou comprometer a modesta constância do seu dia-a-dia. Por isso mesmo é que Amélia e o seu filho tinham de morrer, porque eram o delito que comprometia essa mesma modesta constância e isso não podia ser. Por isso mesmo é que Amaro esconde Amélia e acaba por ser a foice que compromete a vida do seu próprio filho, ao saber muito bem, no fundo, que o estava a entregar a uma ama que o iria matar, mesmo que lhe tenha dito que a criança era para viver. Por isso mesmo é que Amélia se interessa por Amaro e não por João Eduardo, porque tinha sido criada naquele seio conservador do qual não se conseguiu desvincular e por já a sua mãe, a São Joaneira, estar também envolvida com o cónego Dias. Ela duvida, mas não escapa a repetir, sempre, um padrão. João Eduardo iria, por sua vez, corromper a constância dos seus dias e em tudo o que acreditava, no fundo. Tanto Amaro como Amélia teriam a sua escolha se quisessem, mas tanto um como outro escolheram a sua anulação e não conseguiram escapar às malhas de um Portugal passadista onde, no fundo, tudo é permitido, mas desde que não se saiba, porque não fica bem. A diferença é que Amélia era mulher e um elo mais fraco e, por isso, morreu. Já padre Amaro era homem e detinha o poder de um padre, não morreu. Ficou triste, mas bastou-lhe a conveniência de mudança da paróquia e pôde sobreviver com a sua comodidade, e tudo continuou, tal como Carlos da Maia também continuou e tal como, no fundo, tudo continua.

Se transpusermos a obra para a actualidade e se lermos, por exemplo, o relatório da comissão independente encarregue da investigação dos abusos sexuais a menores por parte de padres da Igreja Católica, vemos um comportamento que é quase tido em réplica. Na impossibilidade de assumir o acto e como justificação para o feito mas, também, como desculpa para não abandonar o sacerdócio, Padre Amaro quase que se coloca num plano divino e tenta convencer Amélia que um padre teria, até, mais importância e poder do que um anjo — pelo Padre Amaro, no Egipto só os sacerdotes poderiam ser reis. Os actos são diferentes mas o pensamento quase que é o mesmo, uma vez que o que está expresso nesse relatório é que os padres tentariam convencer ou aliciar as suas vítimas, ou convencerem-se a si próprios, com esta ideia de superioridade sagrada, ou que estariam a fazer algo sagrado ou a pedido de Deus. Durante anos e anos, décadas, séculos, sabia-se o que estava a acontecer, mas a solução qual foi? Esconder e mudar os padres de paróquia. Agora sabe-se, houve uma Comissão Independente a investigar, mas quais são as garantias que temos de que os padres sejam afastados das suas funções? Nenhumas.

Podemos olhar para Portugal como um país que funciona a duas velocidades. As leis progressistas até podem ser aprovadas no parlamento, ficamos contentes pelo modernismo da nossa constituição e tudo bate certo. Mas depois, na sua aplicabilidade, será que não encontraremos resquícios de um Portugal que, tal como Amélia, nunca conheceu mais do que uma lassidão, um conservadorismo, um deixar continuar as coisas como são, recorrendo aos bons costumes, tal como aconteceu com a lei do aborto? Os dados mostram que com a aprovação da lei, ao contrário do que era anunciado, o número de abortos até diminuiu. Mas reportagens recentes também mostram que profissionais de saúde objectores de consciência — podem sê-lo por lei e é um direito, não se nega nem isso — dificultam o acesso à IVG quando, independentemente da sua crença ou opinião, deveriam dar seguimento ao processo sem deixar ninguém sem resposta. Mas casos destes ainda acontecem. É o chamado “cá vamos andando, muito devagarinho e com muito inho”, desde que nada perturbe a nossa consciência nem comprometa o nosso quotidiano.

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