O destino de Yann Tiersen é mais fabuloso que o de Amélie
Yann Tiersen, nome incontornável da música contemporânea francesa, regressou a Portugal no presente mês de março, como um prelúdio da Primavera numa noite de casa cheia. Apresentou-se num estilo intimista, confabulado pela cenografia minimalista e compartimentada do palco. O foco da atenção do público recaía sobre cada nota musical, gerada pelo movimento das mãos do artista, em perfeita comunhão com a evocação da natureza.
Ainda o concerto não tinha começado e já o Coliseu formava um abraço composto por uma plateia que ansiosamente abraçava a aura de Yann Tiersen. Do lado de lá, o palco parecia uma perfeita alusão à máxima ‘o todo é mais do que a simples soma das partes’; do lado de cá, a plateia, cada vez mais cheia, aguardava por aplaudir com gáudio o artista.
À primeira vista o palco parecia parco em adereços; no entanto, ao longo da noite, o cenário foi evoluindo de maneira gradual e lógica, imprimindo um significado desenhado a néons, luzes de presença que circunscreviam o espaço e marcavam os instrumentos que iam ser tocados no itinerário criado por Yann.
Inicialmente, o músico fez-se acompanhar do piano e de um rádio vintage que emitia sons directamente extraídos da ilha de Ushtant – terra natal do artista de 47 anos, localizada na Bretanha. À medida que o concerto avançava, as luzes néon que envolviam o piano davam lugar ao brilho de luzes vizinhas, em torno de um violino; e, mais tarde, iluminar o centro do palco, reservado para o toy piano de Yann. As etapas de evolução cenográfica, que ajudaram a criar uma viagem temporal pela discografia do artista, progridem até ao momento em que as luzes néon brilham em uníssono, tornando o palco uno, ao mesmo tempo que o pianista encanta com uma melódica, instrumento apenas utilizado em “La Dispute”. Foi a música mais aplaudida da noite.
EUSA – o novo álbum do criador de La valse des monstres, que remonta a 2016 – serviu de mote a Tiersen para nos dar as boas vindas: sim, o Porto podia ser a nossa cidade, mas durante uma hora e meia aquela sala de espectáculos foi completamente sua. As melodias que vibravam do piano iam casando com os silêncios do público; nesta relação de partilha conjunta de bens, as sensações valiam mais do que as palavras, e a gratidão surgia por entre aplausos pontuais. Os sons da natureza – recolhidos por si – iam dançando com os do piano, deixando antever desde já o “Futuro” – próximo álbum de Yann, a ser escrito e gravado ao ar livre, em espaços selvagens espalhados pelo mundo, seguindo os passos da génese artística que esteve na origem de EUSA.
O músico francês trocou-nos as voltas com o mapa musical que apresentava – do presente viajou para o futuro, e só depois revisitou o passado. E este último, inevitavelmente, passa pela recordação dos êxitos que lhe ficaram, e bem, eternamente atracados. É impossível dissociar do artista os filmes Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain (de Jean-Pierre Jeunet) e Goodbye, Lenine! (de Wolfang Becker); porém, seria um exercício diminuto e injusto resumir o esplendor da sua obra a estas bandas sonoras. Imaginarmos que “Comptin d’Un Autre Été” estaria no alinhamento seria tão redutor quanto assumirmos que um acordeão estaria entre os instrumentos deste itinerário. É que a digressão “An Evening with Yann Tiersen” lembrou-nos que não estamos em posição para exigir que um músico anule a sua verdadeira identidade artística e satisfaça todas as nossas vontades. E, para que não restem dúvidas, o destino de Yann é bem mais fabuloso que o de Amélie.
Abandonar a atmosfera que o concerto criou não era a vontade da audiência; e, mesmo depois do encore, o público demorou a ausentar-se. O Coliseu, outrora ocupado por Yann Tiersen, era de novo nosso, restando apenas as sensações que ainda se arrastavam no – e com o – tempo.
Um agradecimento especial à WAV e à talentosa Inês Leal pela cedência da fotografia