O melhor golo que alguma vez ouvi
Como qualquer adepto de futebol, já tive oportunidade de assistir a golos incríveis, jogadas fantásticas, fífias dramáticas ou cómicas (dependendo de o autor das mesmas vestir ou não as nossas cores), partidas inesquecíveis e outras. Muitos desses momentos assisti “ao vivo”, embora a maioria através do que no meu tempo chamávamos de meios audiovisuais como a televisão, a rádio e, mais recentemente, “a internet”.
Como qualquer melómano, já assisti a inúmeros concertos de música: autênticas catarses, eventos memoráveis de bandas ou músicos que ajudaram a moldar a minha personalidade, e, claro, outros totalmente olvidáveis. Faz parte.
Como qualquer pessoa que gosta bastante de beber uns copos e pouco de andar a pé, já viajei bastante em táxis (e suas versões mais modernas), boleias de amigos, transportes públicos, etc.
Como qualquer idiota desorganizado, já comprei bilhetes para concertos em dias de jogos do meu clube, e vice-versa.
Foi o que aconteceu a 8 de Março de 2006, dia em que o Benfica jogava em Liverpool a segunda mão dos oitavos de final da Champions League, e em que uma banda, cujo nome não consigo lembrar, tocava em Lisboa. Para ser honesto, não sei se a escolha de eventos teve mais que ver com desorganização, amor pela banda (que não recordo), ou eventual receio que uma equipa com Marcelo Moretto na baliza e Beto no meio-campo não fosse capaz de ombrear levasse na pá de um esquadrão comandado por autênticos generais do relvado como Steven Gerrard e Xabi Alonso e que era, à data, o chamado campeão europeu em título.
Embora já em pleno world de wide web, em 2006 não existia ainda o quotidiano das redes sociais e da informação ao segundo como o conhecemos hoje, e os (tele)phones ainda eram, digamos, pouco smart. Mesmo assim, a conexão possível e existente permitia muito bem saber, à saída do concerto, que o Benfica havia experienciado uma noite mítica em Anfield Road, onde abateu o grandioso clube da terra dos Beatles por dois tentos sem resposta.
O caminho de volta a casa desde o esquecido evento musical foi feito de táxi.
Como qualquer utilizador deste tipo de transporte, já havia apanhado todo o tipo de taxistas. Desde os maçadores — como diria o virtuoso Mário de Carvalho na sua crónica sobre um taxista evangelizador que, certa vez, também tive o azar de apanhar — aos racistas (“se fosse eu a mandar, os ciganos eram o dobro: rachava-os ao meio”), aos silenciosos (abençoados), aos grandes ensinadores (como o que me deu enorme lição de Economia, de que já aqui falei), aos adeptos de futebol.
No oitavo dia do mês terceiro do ano da graça de 2006, dia em que o Sport Lisboa e Benfica desfeiteou a poderosa equipa do Liverpool Football Club, no seu reduto, tive a sorte de encontrar um “chofer de praça” que vestia metaforicamente de água ao peito. Assolados por orgulhosa alegria e irmanados por uma religião comum, dentro daquela banheira verde e negra nenhum de nós, condutor e passageiros, caminhava sozinho.
Foi o senhor taxista que nos mostrou, com as suas próprias palavras, aquilo que os derrotados ingleses chamariam de highlights.
— Na primeira parte, os gajos carregaram bem, mas a gente aguentou. Ainda amandámos uma bola ao barrote, pelo Geovane, mas acho que eles também acertaram uma no nosso ferro. O Moretto fartou-se de defender! Foi um animal! Tirando uma saída em que andou ali a apanhar bonés.
No banco de trás, a claque de três benfiquistas tudo ouvia com atenção aos mais ínfimos detalhes.
— Já a caminhar para o fim da primeira parte, o Simão Sabrosa vem da esquerda para dentro, como ele costuma fazer, pá… aplica um balázio em banana que vai morar onde a coruja dorme, no canto superior da baliza, sem hipótese para o (guarda-redes) espanhol!
— Caganda golo! — exclamou a transportada assistência — Grande Simãozinho!
— Os ingleses continuam a apertar e a gente, ali, firmes. Na segunda parte, o Koeman mete o pequenito, o Mícole, para aproveitar os contra-ataques. Ó pá, mesmo a acabar o jogo, o Beto (fez um jogão!) segue na direita, não percebo se quer centrar ou rematar, a bola vai ter aos pés do pequenito, bate-lhe no pé, sobe, sobe — no banco de trás do táxi, sentíamos cada palavra como se valesse mais do que mil imagens — a bola no ar, e o baixinho não tem mais nada… — o taxista levanta as mãos do volante e roda os indicadores virados para dentro, simulando a complicada acrobacia do anafado atacante transalpino — Pumba! Pontapé de biciclete lá pra dentro!
— Goooooooollllllllllllllllllllllooooooooooooooooooo! — o público foi ao rubro. Saltámos como se o mágico movimento tivesse decorrido ali mesmo, naquele momento, num grito de felicidade imensa que ofuscou a previsível queixa da suspensão traseira do automóvel.
Foi sem dúvida o golo mais bonito que eu já ouvi.
Mas como a vida não é feita só de vitórias ou de grandes tentos, não esqueço também a malograda noite em que contei esta história a um grupo de amigos. Quando cheguei à parte da bicicleta, dei um salto na cadeira de plástico em que me encontrava sentado. Menos resistente do que a suspensão do táxi, não aguentou com o peso dos anos que decerto lhe secaram o polipropileno de tal forma, que a mesma se desfez em mil pedaços quando nela aterrei, já a bola relatada morava nas britânicas redes imaginárias. É demasiado fina a linha que separa um golo triunfante de um humilhante e espetacular autogolo. É nestes momentos que, como dizem os jogadores de futebol, há que levantar a cabeça. Nessa fria noite de conversas à lareira, mais valia ter ido a um concertozinho. Mesmo que daquela banda de que não recordo o nome.