O pensamento da economia budista

por Lucas Brandão,    18 Agosto, 2020
O pensamento da economia budista
Fotografia de Pieter / Unsplash
PUB

Improvável será pensar numa aliança entre a economia, algo tão estatístico e científico, com uma religião que parte de uma filosofia e de uma mundividência, que é o budismo. No entanto, esta não é apenas uma ilusão. É uma realidade. Trata-se, em termos concretos, de uma forma de percecionar a mente humana e o seu modo de funcionamento, assim como as emoções, e os vetores que acabam por nortear a atividade económica. Conceitos, como a ambição, a adaptação e a própria ansiedade, são colocados em diálogo com a economia, abrindo espaço para um autêntico autoconhecimento da atividade económica e dos seus protagonistas. Aquilo que é prejudicial e benéfico é, assim, medido de uma forma distinta, com um pano de fundo ético no sentido da produção e do consumo de bens e de serviços.

Como grande objetivo, a missão está em encontrar um caminho médio, mediador, entre uma sociedade puramente mundana e uma convencional, atual, vislumbrando a interdependência de cada um entre si e dos seres humanos com a Natureza. Não é mais a independência que deve comandar a atividade económica, mas antes um caminho que visa a cooperação e a harmonia, num sentido de vida comunitária e de progresso humano, despojado do egoísmo e da ganância. Aliás, é nesta base que o país do Butão desenvolveu o conceito de “felicidade interna bruta”, ao invés do produto interno bruto, que é usado para medir o desenvolvimento social e económico de um país. Este conceito abrange um compromisso com a formação de uma economia sustentável e alinhada com os valores espirituais budistas, com um sentido ambientalista forte, com uma governança saudável e com uma adequada promoção cultural. Esta felicidade coletiva é constatada, assim, no bem-estar psicológico, na saúde, na utilização do tempo, na educação, na diversidade cultural, na resiliência, na vitalidade da comunidade e na diversidade ecológica.

Vários foram os académicos que procuraram estudar, de um ponto de vista científico, o budismo como fonte teórica para a construção de uma metodologia económica. A professora norte-americana Clair Brown, da Universidade de Berkeley, na Califórnia, foi a responsável pelo desenvolvimento desta área de estudos nessa faculdade, para além de desenhar as traves mestras de um modelo holístico que visa a sustentabilidade global e a prosperidade partilhada. A avaliação do desempenho económico sustenta-se no quão bem a economia é capaz de prover qualidade de vida para todos, enquanto não descura o ambiente do seu palco de atuação. Para lá de padrões de consumo e de exportação, entram em equação a equidade, a sustentabilidade e as atividades que conseguem dar origem a uma vida com sentido. O bem-estar do indivíduo funde-se, assim, no fomento da riqueza interior e espiritual, ao invés da material.

Ao se perceber aquilo que cria a irracionalidade é que se consegue, efetivamente, tomar decisões verdadeiramente racionais; isto é, ao se entender aquilo de que é feito o desejo e o medo, toma-se a consciência de que há a necessidade de abdicar uma desenfreada procura pela riqueza e de assumir uma postura compassiva em relação a todos. A empatia, a sagacidade e algum nível de austeridade pessoal alinham a vertente espiritual budista com o sentido resoluto e construtivo da economia, vocacionado para a resolução dos problemas que afetam a humanidade. Aquilo que alinha ambas as posturas assenta num objetivo comum de suficiência individual, coletiva e ambiental. Na base, para além de alguns impérios orientais, como o de Ashoka, no século 3 a.C., está um instinto filantrópico e verdadeiramente social e comunitário.

O termo “economia budista” acabaria por ser firmado pelo economista alemão E.F. Schumacher em 1955, à data consultor económico do primeiro-ministro de Myanmar. Os indivíduos necessitam de bom trabalho para um desenvolvimento humano adequado, fortemente assente numa produção a partir de recursos locais, que são capazes de suprir, de forma racional, as necessidades locais existentes. Foi com este instinto que Schumacher percorreu diversos países do terceiro mundo, defendendo uma economia autossuficiente nos seus países, capaz de ser acessível a todos e ecologicamente sustentável, em linha com o progresso tecnológico. A sua proposta no mundo científico acabou por colher mais atenção numa tradição budista, a Theravada, a mais antiga de todas elas.

No seu olhar, os ensinamentos de Buda permitem perceber como viver e como usar a riqueza à sua disposição. A criação de riqueza, embora valorosa, deve ser avaliada de um ponto de vista ético, ou seja, de que forma foi ela arrecadada. Assim, e sob o olhar de Buda, não deve ser obtida por intermédio de mortes ou do sofrimento do alheio, para além da mentira, do roubo ou do engano. O trabalho deve ser atribuído de acordo com as capacidades de cada um, com um mestre a dever cuidar dos seus trabalhadores, dando-lhes o alimento e o salário, atendendo a eles na hora da enfermidade e de lhes garantir alguns momentos de ócio. Quanto aos usos da riqueza “moralmente arrecadada”, estes devem ser direcionado para o prazer e satisfação dos próprios trabalhadores e dos seus familiares, amigos e associados, de garantir a sua segurança de potenciais calamidades, de garantir oferendas aos mortos e às divindades, assim como aos monges. Isto porque a caridade e a doação são dois predicados relevantes na forma de viver budista e, como tal, providenciais num pensamento de uma economia budista ética.

O dar e o partilhar mobilizam o trabalho social e várias iniciativas ativistas, assentes em organizações ligadas ao budismo engajado, com a missão de aplicar os ensinamentos e as práticas meditativas perante as vicissitudes sociais e económicas, perante as injustiças e o consequente sofrimento. Um dos nomes mais fortes deste vínculo do budismo com a sociedade é o monge Thich Nhat Hanh, vietnamita que permanece como um rosto do ativismo a favor da paz mundial. Assim, e no ponto de vista mais abrangente, os textos budistas invocam a necessidade de edifícios públicos que beneficiem a comunidade como um todo, desde hospitais a parques de lazer; para além de vincar a importância da doação de quem mais tem e de quem mais obtém em benefício dos seus semelhantes, à imagem do mercador Anathapindika (o alimentador dos pobres). O empreendedorismo é, assim, plausível, desde que atendendo a essa retidão ética e às necessidades da comunidade. Um exemplo desta postura é a do rei Chakravatin, tomado como o governador universal ideal, pela forma como governava justamente, atendendo às necessidades dos mais desfavorecidos e dos mais pobres, defendendo o seu reino pelas armas em última necessidade e acolhendo os emigrantes e refugiados, integrando-os numa sociedade mobilizada para a prosperidade humana e animal.

Esta postura muito voltada para a atividade social e para o bem-estar e a segurança de todos é o que também acaba por promover a ação de muitos mosteiros budistas, que acolhiam os pobres, os órfãos e os mais velhos, atendendo às suas maleitas, amas também dando-lhes formação e outro tipo de apoios. Autores ocidentais, como o americano Robert Thurman, deram a entender uma comparação entre esta postura e a de um Estado Social. Autores ocidentais e orientais teceram críticas sobre as dinâmicas capitalistas e visavam, através de uma emancipação espiritual, encontrar um método económico mais condizente com as necessidades da sociedade. O próprio Dalai Lama defendeu as ideias e os valores socialistas, à luz da distribuição da riqueza e da autossuficiência também associadas aos escritos budistas. A purificação do caráter humano é o que permite que a civilização seja e esteja mais sã e capaz de se integrar numa economia sustentável, onde os desejos humanos são refreados e voltados para uma vida simples, em que os padrões de consumo são somente regulado pelo desenvolvimento do potencial humano e do seu bem-estar, tanto individual, como social e ambiental. É um contraste em relação aos padrões destinados a uma satisfação vã de desejos e de sensações egóicas, que redundam em ilusões e em sentimentos de aversão, de ansiedade e de cobiça.

O contentamento é, em suma, a grande riqueza defendida pela economia budista, sendo a pobreza e a dívida os grandes fundamentos de uma sociedade imoral e atormentada pela pobreza e pela instabilidade, onde há o risco de não haver paz e de as necessidades básicas de vida correrem perigo de não existir. Não se trata, assim, de uma refutação total dos bens materiais, mas de uma postura equilibrada e alinhada com o desapego, em que os bens são usados e possuídos e não as pessoas que são usadas e possuídas por esses bens. O indivíduo, a sociedade e o ambiente são, assim, os três aspectos principais através dos quais a existência humana é percecionada, assim como os seus hábitos de consumo. As considerações sobre os impactos positivos e negativos que o consumo de um dado bem ou o usufruto de um dado serviço são avaliados com base nesses três pilares, sendo que cada ser humano deve ter a chance de usar e de desenvolver as suas capacidades e a sua atitude, embrenhando-se com outras pessoas em tarefas rudimentares para o arrefecimento dos comportamentos egóicos e de, no fim, prover bem e serviços que sejam necessários para uma melhor existência.

Os seres humanos são convidados a desapegarem-se da vertente material e de uma noção de auto-interesse e a embarcar numa dinâmica de generosidade e de reciprocidade mútua. Isto porque os seres humanos tendem a dar aquilo que recebem, tanto positiva como negativamente. A minimização do sofrimento correlaciona-se com a capacidade de cada indivíduo mostrar uma maior sensibilidade perante as perdas do que em relação aos ganhos, sendo que o enfoque deve, assim, voltar-se para a redução dessas mesmas perdas. Os desejos simplificam-se e as necessidades básicas – comida, roupa, abrigo e cuidados de saúde – tornam-se primárias, desvalorizando diversas outras necessidades de cariz material. O bem-estar geral diminui perante o desejo das pessoas por desejos supérfluos e, como tal, quando menos se quer, melhor se vive em comunidade, melhor está o ambiente e melhor também está o ser humano.

Os mercados devem, também eles, assumir um protagonismo com uma outra roupagem, nomeadamente a de minimizar a violência (ahimsa, o princípio da não-violência), atendendo à voz silenciosa que as pessoas marginalizadas e as comunidades mais empobrecidas têm na representatividade do processo económico. Invocando esse princípio, é necessário encontrar soluções que permitam que todos possam fazer parte do palco das decisões da atividade económica, como as comunidades e a coordenação que estas assumem nas atividades que desenvolvem. Para além de fomentar a confiança e a participação de todos, permite que haja um corpo de valores ético e uma maior proximidade entre as pessoas e entre elas, os instrumentos de trabalho, o próprio ambiente, as matérias-primas e os produtos finais. Para que isto possa acontecer e se possa tornar numa economia sustentável, importa reestruturar as configurações predominantes da economia, fazendo decair a visão ultrafocada no lucro e mobilizada para pequenas atividades, embora adaptáveis e verdadeiramente indispensáveis.

O valor instrumental das relações de trabalho (os níveis de produtividade) que a economia tradicional defende é transformado pela ótica budista numa atenção redobrada pelas pessoas e pelas partes constituintes de uma organização de trabalho. O bem-estar e a confiança entre os trabalhadores dos diferentes graus hierárquicos são as premissas-base das relações de trabalho. O menos é mais e o pequeno é belo na economia budista, tomando em consideração o verdadeiro valor do trabalho, que deve ser apreciado e aplicado como uma força de motivação. A força criativa e os seres humanos não caem em descrédito perante o binómio produção-consumo, sendo que só essa perspetiva direcionada para a valorização do ser humano é que possibilita que haja uma verdadeira emancipação económica, que se desprende da cobiça pelos prazeres e pela riqueza. Assim, não são os padrões de consumo que determinam a prosperidade de uma sociedade, porque, do consumo, não se pode aferir que alguém esteja, de facto, bem consigo e com a sociedade que a rodeia.

É nesta perspetiva que, ao serem autossuficientes na sua atividade económica, se possa encontrar a racionalidade tão visada, circunscrevendo aquilo que cada um faz às suas necessidades e às necessidades da sua comunidade. Interessante é, de igual modo, o olhar sobre os recursos naturais e (não-)renováveis, em que os economistas budistas defendem que os recursos limitados devem ser usados somente em extrema necessidade e com cuidados redobrados e devidamente planeados. Usá-los desenfreadamente é criar uma atuação violenta, assim como depender exclusivamente deste tipo de recursos, dado que se vive como parasitas, onde uma distribuição mal feita e uma exploração pouco medida dos recursos naturais acaba por gerar conflitos e desarmonias no seio da sociedade.

A satisfação, por sua vez, pode ser atingida, não somente por trocas comerciais materiais, em que há um proveito para cada lado, mas também quando somente uma das partes é beneficiada. Isto é exemplificado com o caso de uma gratificação que é dada a alguém, como uma prenda, com o sentimento de felicidade da parte que concede o bem. Do ponto de vista produtivo, a produção e o consumo, complementares entre si, devem atender a uma produção sustentável, que não seja nociva nem expropriadora dos recursos mundiais e alertando para a necessidade de cada um ser atento e responsável consigo, com os seus e com o ambiente. Em condições ótimas, o tempo e o espaço não despendidos na produção devem ser canalizados para a meditação, que é um caminho que ajuda a que o desejo pelo consumo possa ser refreado, assim como a sensação de satisfação com estes renovados padrões de consumo. Para além disso, a meditação acaba por capacitar os trabalhadores para uma economia mais equilibrada e orientada para a satisfação individual, social e ambiental.

Ainda a conquistar o seu espaço no mundo da academia, nomeadamente naquilo a que à economia diz respeito, a economia budista tem conhecido algum espaço para a sua afirmação, em especial com as vozes que urgem por uma economia mais sustentável e por padrões de consumo mais equilibrados. Por entre a curiosidade de teóricos e a ancestralidade dos práticos, comunga-se um espírito que procura olhar mais pelo ambiente e por um sentido comum, que contrasta com a individualidade que é pronunciada com veemência nos mercados económicos atuais. Não obstante estar longe de ser uma solução perfeita – aliás, nenhuma o é -, a economia budista, por intermédio de pensadores com diferentes formações e pontos de partida, abre outras perspetivas sobre como pensar o mundo material e as suas relações. Pondo de parte a dimensão religiosa, as premissas do budismo como uma filosofia permitem que a economia se possa conhecer melhor e, nesse sentido, se possa cuidar melhor. De si, dos seus e do ambiente.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados