“Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, de Radu Jude: a sátira pandémica alucinante de que precisávamos

por Bernardo Crastes,    8 Setembro, 2021
“Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, de Radu Jude: a sátira pandémica alucinante de que precisávamos
“Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, de Radu Jude
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“Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental” estreia nos cinemas portugueses a 9 de Setembro.

Eis que chegou o primeiro grande filme pandémico. No novo filme do romeno Radu Jude (que entrevistámos recentemente), “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, aos dilemas humanos sobre os quais as personagens se debruçam adicionam-se a utilização de máscaras e o distanciamento social, num reflexo ainda meio alienígena daquilo que vivemos hoje em dia. É estranho ver essa realidade já retratada no grande ecrã mas, felizmente, o filme não trata apenas disso. Aliás, essa realidade normalmente é apenas um apontamento contextual e veículo para algumas piadas, enquanto Jude dilacera a sociedade contemporânea com referências certeiras às redes sociais, ao machismo, à hipocrisia, entre muitas (com ênfase em “muitas”) outras coisas.

Emilia (Katia Pascariu), uma professora do ensino básico, participa num vídeo íntimo amador com o seu marido que acaba por ser publicado na Internet, para ira dos pais dos seus alunos. Com a sua carreira e reputação em risco, a jovem vê-se obrigada a reunir com os pais e a directora da escola para discutir o caso. O filme acompanha a sua demanda até essa malograda reunião, dividindo-se em três partes que servem para contextualizar, definir e expor, respectivamente.

“Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, de Radu Jude

O filme abre logo com o preâmbulo da sex tape, muito crua e totalmente explícita, que põe os espectadores em sentido. A exposição do objecto de tanto escárnio é claramente feita para chocar, mas também nos diz muito sobre as intenções do realizador, que, livre de julgamento, retrata o sexo como algo natural, mas também desajeitado e até meio cómico. O contraste da cena hilariantemente atrevida com a primeira parte é grande, em que vamos no encalço de Emilia pelas ruas de Bucareste à medida que vai tratando de tarefas quotidianas e parece ruminar nas consequências da partilha do vídeo.

A câmara de Jude segue a personagem de uma forma que se pode apelidar de “distraída”, detendo-se em detalhes do caos da capital romena (como cartazes publicitários, lojas hiperestimulantes ou arquitectura decadente) e expondo cenas do dia-a-dia de uma forma mais colorida que outros filmes da Nova Vaga romena. Com um toque de surrealismo nos diálogos e nos cenários, este primeiro segmento contextualiza a sociedade em que Emi enfrentará o seu juízo, retratando Bucareste com a crueza de uma sociedade desconfiada e em que actos de violência ou incivilidade podem explodir a qualquer instante. É um segmento ocasionalmente tenso e que pode parecer não ter rumo, mas rapidamente revela todas as suas qualidades depois de passarmos por todas as partes do filme.

Em jeito de dicionário satírico, a segunda parte faz uso das legendas para nos levar por 26 minutos de pequenos sketches que definem termos tão variados como “guerra”, “pénis” ou “Igreja Ortodoxa Romena”. O tom é bizarro e confrontador, cruzando humor mordaz com crítica social ocasionalmente chocante. É difícil comparar este segmento transgressivo com qualquer outra coisa no cinema. À medida que avançamos no alfabeto, a expectativa cresce, assim como a confusão que nos assola relativamente ao ponto que Radu Jude quer fazer com tudo isto. À semelhança do primeiro segmento, o recurso a este meio revela-se vital na terceira parte, na qual os termos aqui definidos são usados amiúde pelos pais presentes na reunião com a professora.

Literalmente apelidada de “sitcom” e quase gravada como uma, esta terceira parte é uma única longa cena cujo argumento massivo impressiona pelas tiradas certeiras e pelo chorrilho de referências — ora são grupos de WhatsApp, ora a Hannah Arendt (Hannah Montana!), ora o poeta nacional Mihai Eminescu; é quase impossível apanhá-las todas. O destino da pobre professora encontra-se nas mãos de personagens tão ou mais degeneradas que a mesma; personagens que são a autêntica personificação de uma caixa de comentários do Facebook. A desgraça alheia diverte-os, à medida que vêem e revêem o vídeo “perverso”, tecem ilações sórdidas sobre ciganos, homossexuais ou mulheres e se perdem a esgrimir argumentos sobre tudo e mais alguma coisa, sob o disfarce de “proteger a inocência das crianças”. Esta cacofonia de tudo o que está errado na sociedade é exasperante e altamente viciante.

Quanto mais avançamos, mais a discussão vai implodindo e espiralando, enquanto nós entendemos que esta meta-comédia de Radu Jude é principalmente um grande dedo do meio a todos nós. Como se isso não fosse evidente, o epílogo assume o próprio filme como uma grande “piada” e dá-nos três possíveis finais. Nenhum deles tem o objectivo de nos dar closure, até porque, nesta sociedade, nada é tão facilmente resolvido. No entanto, há sempre algumas conclusões mais gratificantes que outras.

“Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental” valeu à Roménia o seu terceiro Urso de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Berlim na última década. Nas palavras do júri do festival, este é “um filme que tem aquela qualidade rara e essencial de um trabalho artístico duradouro. Captura no ecrã o conteúdo e a essência, a mente e o corpo, os valores e a carne crua deste presente momento. Deste preciso momento da existência humana”. Este filme assumidamente radical não é para todos, mas certo é que vê-lo é uma experiência alucinante e difícil de esquecer.

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