O porquê de ter ido a Serralves de propósito para ver Sarathy Korwar
Ainda numa de ir só a concertos muito específicos, a minha curadoria foi ao ar quando chegou o programa do Serralves em Festa. Serralves, que traz uma iniciativa cultural tão rica em diversidade e em expressão artística, de vários lugares do mundo e que já traz uma identidade própria, em muito apoiada pela missão do museu da Fundação. O Serralves em Festa já me havia despertado interesse no passado, embora nunca tivesse calhado de cruzar caminhos com ele. No seu regresso deste ano, e depois de uma leitura na diagonal à programação, dou de caras com um nome que sempre pensei que fosse um segredo meu: Sarathy Korwar.
Um segredo meu porque somente, por uma vez, o vi num meio de comunicação social em Portugal. Segredo meu porque nunca o vi partilhado por aí por ninguém de língua portuguesa. Estou (bem) enganado. E ainda bem que assim é. Mas então, o porquê de ter ficado de queixo caído e com uma adrenalina gigante quando soube que estaria no Porto? Pois bem, Sarathy Korwar não é como os outros, é alguém (mesmo) muito especial. É um nome que traz a herança cultural da Índia, traz o jazz ocidental, traz a necessidade de uma expressão social permanente e super consciente, com camadas e camadas de musicalidade e de mundo.
Traz percussão, traz hip-hop, traz eletrónica, traz o espiritual para a realização artística. Traz o gosto por Alice Coltrane ou por Pharoah Sanders, traz o indojazz que bebeu do facto da cultura hippie ter recorrido aos gurus espirituais, traz uma constante reatualização e reprogramação. Traz questões existenciais, traz dúvidas, mas também traz revelações e colaborações com a poesia, com o rap, com a Natureza. Traz uma música que é presente na sociedade e age como resposta aos desafios de um mundo plural e diverso, que une ocidente ao oriente. Traz futurismo, traz símbolos e simbologia, traz o tempo e o espaço ao serviço da música. Enfim, reúne num só indivíduo um mundo de mundos.
Nomes como Shabaka Hutchings, o duo Yussef Kamaal, Anoushka Shankar ou Kamasi Washington já tiveram o privilégio de tê-lo consigo nas suas tournées (e vice-versa). É, em muito, a personificação do seu Upaj (improvisar) Collective, vivendo da espontaneidade de se aventurar em tanta coisa ao mesmo tempo. Enquanto isso, conforme se acompanha a sua discografia, nota-se um amadurecimento crescente e um consolidar de um registo musical que começa a ter a sua traça. Uma traça de urbanidade indiana que não esquece os (des)equilíbrios da sua sociedade e da herança colonial que traz. Visitem-se, assim, “Day to Day” (2016), “My East is Your West” (2018, um testemunho sensacional gravado ao vivo), “More Arriving” (2019), “KALAK” (2022) e o mais recente “KAL (Real World)” (2023).
Encaixado nos três dias do atarefadíssimo Serralves em Festa — um cartaz profundamente eclético e que só o dissecando é que se percebe o quão bom é —, fiquei deslumbrado quando o vi mesmo apontado para o meio. Às 20 horas de sábado, que melhor intervalo de tempo para um concerto com estes predicados. Um concerto que se avizinhava espontâneo, místico, musicalmente evoluído e a rasgar com as fronteiras entre ocidente e oriente. Logo no amplíssimo Prado, verdejante e sustentável o suficientes para acolher da melhor forma a sua música. Mesmo que fosse no topo de uma árvore, não havia problema para assistir a Korwar e companhia e à sua filosofia musical e artística que tanto me ressoa.
Chegado ao Prado, após passar por mais gente do que árvores, assisti ao início dos soundchecks de Korwar e companhia: a saber, o saxofonista e flautista Tamar Osborn, o percussionista Magnus Mehta e o teclista Alistar MacSween. Saborearam-se os aperitivos sonoros que faziam antever essa diferenciação musical que tanto o carateriza. Depois de ajustes feitos e de meia-hora de espera pelo concerto, Korwar ascendeu ao palco e poucos eram, até ao início, os que se tinham chegado ao palco. A verdade é que Serralves convidava ao convívio e à partilha e o melhor lugar para o fazer era refastelados no piso. Porém, consoante o repertório foi aparecendo e a percussão se intensificando, o público foi, a pouco e pouco, erguendo-se e foi absorvido pela transcendência.
Uma transcendência que não era feita de chamadas à espiritualidade, mas antes do tal convívio do melhor que o jazz tem com a música indiana. Entre tablas, flautas e sintetizadores, a música foi-se proporcionando sob a batuta da alma deste projeto: Sarathy Korwar. O artista fez da bateria a sua melhor amiga, sem esquecer, também, as mensagens com que ia fundamentando a sua música: a homenagem à figura feminista do Bangladesh, Begum Rokheya e as referências à história colonial e à amnésia histórica. Como pano de fundo, o símbolo do álbum “KALAK”, símbolo esse que representa a circularidade do tempo, muito mais do que linear e retilíneo, conforme o músico explicou.
A percussão foi, assim, nota dominante e triunfante da música de Korwar, que fez dos mais graúdos aos mais miúdos — sim, as crianças estavam na linha da frente em coreografias que tinham tanto de espontâneas como de sensacionais — gente mais rica e alegre no fim do concerto. Se muitos, talvez, o tivessem visto por ficar num horário interessante, num fim de tarde de sábado, seriam, de igual modo, muitos aqueles que transformariam a sua opinião no sentido de, efetivamente, o quererem ver. E querer ver mais e melhor, de compreender o que “KALAK” representa, mas também o que “Bismillah” significa [uma revelação: em nome de Deus], dado que foi a faixa que fechou o concerto.
Sarathy Korwar sentiu a energia e o carinho dados por aqueles que o assistiram e que tanto dançaram ao som da sua música. Pessoalmente, creio ter razões que cheguem para ter saído de casa e ter feito uma viagem de hora e meia de transportes públicos para vê-lo. De pensar que se tratou de uma mera casualidade ter visto o seu nome no cartaz. O Porto ficou mais feliz e elevado, Korwar (e companhia) saiu de coração cheio e eu trouxe um sorriso na alma. Um sorriso de quem sentiu a sua missão cumprida e de quem quer que haja mais Sarathy Korwars (e companhias) na vida de quem me rodeia.